domingo, 29 de novembro de 2020

PARA DOMINGO

 

 

O último sábado de novembro se vai. Desanimado para chegar à janela, me jogo na poltrona como o Homer Simpson. Francamente, há coisa melhor que ficar de pijama na frente da tevê vendo um filminho antigo - daqueles que hipnotizam pela carga nostálgica? Sou como o coração daquele moço da canção dos Titãs que capturava tudo o que a antena captava. Viva a televisão que, segundo Nelson Rodrigues, “tem de ser feita para as massas, e as massas são burras e têm mau gosto”. Não me ofendo com suas palavras. Assumo minha burrice e meu mau gosto. E assistirei muita tevê neste derradeiro sábado de novembro. Tem coisa melhor? Não tem.

Na vida, no entanto, nem sempre dois e dois são quatro. Reza a aritmética de Caetano: pode ser cinco. Didi Mocó filosofava: “assim como são as pessoas são as criaturas”. É justo, então, que existam criaturas por aí a preferir outras coisas. Dercy Gonçalves, por exemplo, dizia que as melhores coisas da vida são comer, dormir e cagar. Para Dercy, “cagar é ótimo”. Por isso sempre curti televisão. Tem de tudo.

      Seguindo por esse caminho das citações, mencionei noutra crônica a minha caderneta para anotar frases. É tipo a cadernetinha de Jorge Tadeu. O leitor não se lembra do personagem de Fábio Jr. em Pedra sobre Pedra? Deixa pra lá. Minhas referências estão ficando passadas mesmo. Mas, ao contrário do Jorge Tadeu que anotava os codinomes de suas amantes, eu anoto frases de filósofos, escritores e artistas. O leitor, feito o Pernalonga, me indagará “o que que há, velhinho?” ou, como a Vera Verão, “o que se assucede no pedaço” para você vir nessa tarde quente desenterrar o passado? Digo: “não sei, só sei que foi assim”. Culpa do ócio. Do ócio criativo, diria Domenico de Masi. 

         Afinal, se Fernando Sabino sentenciou que “crônica é tudo que a gente chama de crônica” porque eu não posso escrever uma “crônica de citações” largado na poltrona com o suor escorrendo pelas costas até a fronteira sul? Tanto posso que peço licença ao estimado leitor para lascar esta: “nada melhor do que vomitar com outra pessoa para ganhar intimidade.” O que isso tem a ver com o texto de hoje? Tudo, oras. Na crônica passada, comentei que li “A Redoma de vidro” da Silvia Plath. Li e pincei esta pérola. O leitor, que certamente já vomitou alguma vez na vida, o fez acompanhado de um(a) amigo(a), namorado(a), tico-tico-no-fubá, pai/mãe? Não? Já me viram vomitando. E, sinceramente, não foi das cenas mais agradáveis que encenei, não. Aliás, foi patética.  

          Saindo desse tema embaraçoso, trago Dostoievski. Sim, também lemos os clássicos (que certamente também vomitavam litros e litros de vodcas, pois naquele tempo se bebia tanto quanto hoje). “O homem é uma criatura que se acostuma com tudo e acho que esta é a sua melhor definição.” Sim, nos acostumamos com tudo. Com o calor insano de novembro, com as máquinas do prefeito cobrindo as ruas de piche, asfalto e fumaça em pleno sábado... com a solidão da pandemia. O homem se adapta a tudo, ainda que a situação fique russa. Veja o adaptativo leitor: acostumado a ler minhas tolices. Seu grau de adaptação o levou a tolerar até verbos menos nobres como cagar e vomitar. Afinal, parafraseando certo mito (aos quais também nos acostumamos): não escrevo “para maricas”.  

Para a crônica não sair mais emporcalhada que já está - e acabe com o domingo do leitor - cito Oscar Wilde. Por quê? Ele fala sobre o tempo. E o tempo (por conseguinte, a velhice) nos faz perder a compostura, os modos, “a vontade de dourar pílula” como dizia o outro. O tempo nos deixa mais sincero. Tal como a criança, o velho diz o que pensa, sem medo de ser feliz. Ou de ser taxado de caduco. Disse Wilde: “a tragédia da velhice não consiste no fato de ser velho, mas no de ter sido moço.” Envelheci. Só um cronista velho e desbocado para lascar tantas frases de antanho, escrever “cagar” e “vomitar” em um texto que, a princípio, será lido no domingo pela família.




Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: minha caderneta de anotações (novembro de 2020) 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Outra vez no cinema

            Viu nas redes sociais que está em cartaz o novo longa dos Caça-Fantasmas. Nessas horas servem pra alguma coisa útil, essas redes...