O último sábado de novembro se vai. Desanimado para
chegar à janela, me jogo na poltrona como o Homer Simpson. Francamente, há coisa
melhor que ficar de pijama na frente da tevê vendo um filminho antigo - daqueles
que hipnotizam pela carga nostálgica? Sou como o coração daquele moço da canção
dos Titãs que capturava tudo o que a antena captava. Viva a televisão que,
segundo Nelson Rodrigues, “tem de ser
feita para as massas, e as massas são burras e têm mau gosto”. Não me ofendo
com suas palavras. Assumo minha burrice e meu mau gosto. E assistirei muita tevê
neste derradeiro sábado de novembro. Tem coisa melhor? Não tem.
Na vida, no entanto, nem sempre dois e dois são quatro.
Reza a aritmética de Caetano: pode ser cinco. Didi Mocó filosofava: “assim como são as pessoas são as criaturas”.
É justo, então, que existam criaturas por aí a preferir outras coisas. Dercy
Gonçalves, por exemplo, dizia que as melhores coisas da vida são comer, dormir e
cagar. Para Dercy, “cagar é ótimo”. Por
isso sempre curti televisão. Tem de tudo.
Seguindo por esse caminho das citações,
mencionei noutra crônica a minha caderneta para anotar frases. É tipo a
cadernetinha de Jorge Tadeu. O leitor não se lembra do personagem de Fábio Jr.
em Pedra sobre Pedra? Deixa pra lá. Minhas referências estão ficando passadas
mesmo. Mas, ao contrário do Jorge Tadeu que anotava os codinomes de suas
amantes, eu anoto frases de filósofos, escritores e artistas. O leitor, feito o
Pernalonga, me indagará “o que que há,
velhinho?” ou, como a Vera Verão, “o
que se assucede no pedaço” para você vir nessa tarde quente desenterrar o
passado? Digo: “não sei, só sei que foi
assim”. Culpa do ócio. Do ócio criativo, diria Domenico de Masi.
Afinal, se Fernando Sabino
sentenciou que “crônica é tudo que a
gente chama de crônica” porque eu não posso escrever uma “crônica de
citações” largado na poltrona com o suor escorrendo pelas costas até a
fronteira sul? Tanto posso que peço licença ao estimado leitor para lascar esta:
“nada melhor do que vomitar com outra
pessoa para ganhar intimidade.” O que isso tem a ver com o texto de hoje?
Tudo, oras. Na crônica passada, comentei que li “A Redoma de vidro” da Silvia
Plath. Li e pincei esta pérola. O leitor, que certamente já vomitou alguma vez
na vida, o fez acompanhado de um(a) amigo(a), namorado(a), tico-tico-no-fubá,
pai/mãe? Não? Já me viram vomitando. E, sinceramente, não foi das cenas mais agradáveis
que encenei, não. Aliás, foi patética.
Saindo desse tema embaraçoso, trago Dostoievski.
Sim, também lemos os clássicos (que certamente também vomitavam litros e litros
de vodcas, pois naquele tempo se bebia tanto quanto hoje). “O homem é uma criatura que se acostuma com tudo e acho que esta é a
sua melhor definição.” Sim, nos acostumamos com tudo. Com o calor insano de
novembro, com as máquinas do prefeito cobrindo as ruas de piche, asfalto e
fumaça em pleno sábado... com a solidão da pandemia. O homem se adapta a tudo, ainda
que a situação fique russa. Veja o adaptativo leitor: acostumado a ler minhas tolices.
Seu grau de adaptação o levou a tolerar até verbos menos nobres como cagar e
vomitar. Afinal, parafraseando certo mito (aos quais também nos acostumamos): não
escrevo “para maricas”.
Para a crônica não sair mais emporcalhada que já está - e
acabe com o domingo do leitor - cito Oscar Wilde. Por quê? Ele fala sobre o
tempo. E o tempo (por conseguinte, a velhice) nos faz perder a compostura, os
modos, “a vontade de dourar pílula”
como dizia o outro. O tempo nos deixa mais sincero. Tal como a criança, o velho
diz o que pensa, sem medo de ser feliz. Ou de ser taxado de caduco. Disse Wilde:
“a tragédia da velhice não consiste no
fato de ser velho, mas no de ter sido moço.” Envelheci. Só um cronista
velho e desbocado para lascar tantas frases de antanho, escrever “cagar” e
“vomitar” em um texto que, a princípio, será lido no domingo pela família.
Texto: Raphael Cerqueira Silva
Foto: minha caderneta de anotações (novembro de 2020)
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