domingo, 23 de maio de 2021

OS ANJINHOS

 

         

      Quando entrava maio, anjinhos vestidos de branco, rosa, amarelo ocupavam as ruas, em procissão. Eu gostava de acompanhar o cortejo quando a banda tocava. Empertigado com minha flauta vermelha, me sentia membro da filarmônica.

         Antes da procissão partir rumo à igreja, as mães organizavam os anjinhos na porta da casa da coroadeira e decidiam quem levaria a palma, os pratinhos de papel com pétalas de rosas, os ramalhetes, o andor com a imagem de Nossa Senhora... Os músicos aguardavam, alguns encostados em muros e cercas, atentos aos comandos do maestro. O moço alto repassava a melodia com o trompete; sob a pálida lâmpada da Força e Luz, o jovem de espinhas folheava partituras; no outro lado da rua, parte do grupo ria do companheiro que, afoito, trazia o bombardino e desculpava-se pelo atraso.

         Os primeiros fogos riscavam o céu. A batuta, solene, se erguia: um, dois, três... os acordes, então, davam o tom à marcha angelical. Lá na frente, fogos de bengala iluminavam a rua e o rosto da coroadeira que, radiante, puxava o cortejo. Em fila, anjinhos de vários tamanhos seguiam-na – alguns com as asinhas tortas, outros sem elas; um incomodado com o arquinho caído na testa; e, outra vez, a gordinha puxava o vestido branco como se pretendesse livrar-se de um fardo... Entre as crianças e a banda, atento ao ritmo dos dobrados e das marchas, o maestro Altamir da Rocha. No final da procissão, atrás do homem da tuba e do moço que, a cada batida, elevava os pratos como se quisesse sapecar as estrelas, eu tocava minha flauta.

         Eu não entendia nada de notas e claves, tempos e compassos, mas ficava atento ao bailado da batuta. Extasiado, achava tudo mágico: os dobrados, os instrumentistas e seus trajes, as partituras pregadas nas suas costas como roupa em varal, o maestro, com seus óculos grossos, sempre à cata de deslizes e desafinações. Muito sério, ele olhava a clarinetista, voltava-se para o saxofonista, espiava o homem do trombone. Observando-o, aprendi que os olhos podem dizer mais que as palavras.

         Defronte à escadaria da São Sebastião, ao som de Saudades da Minha Terra, fogos coloridos competiam com as estrelas. “Fogos são perigosos” alertara-me o pai; mas naquele momento tudo era tão lindo que eu esquecia as histórias trágicas de gente que perdera dedos e mão... Os anjinhos, então, entravam na matriz. Um a um, encarapitavam no altar ornado com flores. A banda se posicionava na entrada principal, esperando para executar a derradeira música. A coroadeira cantava o esperado “Mãezinha do céu eu não sei rezar”. Depois que Nossa Senhora recebia a coroa, as pétalas saltavam dos pratinhos para tingir de tons variados o altar e os ladrilhos da igreja.

Em debandada, os anjinhos corriam ao salão paroquial em busca das sacolinhas. Cajuzinho, chiclete, cocada, maria-mole, suspiro, pirulito, caramelo, jujuba, bala, doces de goiaba, de abóbora, de leite... tantas delicias eram apenas para os anjinhos, mas quase sempre guardavam uma sacolinha para mim, o menino da flauta.

Até hoje, quando ouço uma banda executar o Dois Corações, meu pensamento voa ligeiro àquelas noites. Noites em que o sereno preocupava minha mãe, sempre a insistir que eu vestisse o agasalho. Todavia, eu não dava bola para o frio: queria apenas seguir a banda e tocar do meu jeitinho o Baptista de Mello. Enquanto o ar se esfumaçava com os fogos, eu marchava atrás da filarmônica, crente que não perdia o ritmo, que ganharia uma sacolinha no fim do festejo.

O maestro dizia: quando você crescer mais um pouco, vai ter aulas comigo, lá na Scipião Rocha. Apesar dos seus constantes convites, não estudei. Bubiça de menino: única explicação que tenho hoje para minhas sucessivas recusas em frequentar suas aulas. Menino é assim mesmo: bicho teimoso, só faz o que dá na veneta.

Não sei se estão coroando Nossa Senhora neste ano. Os tempos são outros... quando findar toda essa loucura, vou sair correndo à rua para ver a banda. Ao ouvir o Dobrado 220, tenho certeza, vou me lembrar da flauta vermelha e da banda do Maestro Altamir.

 


 

Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor (São Geraldo/MG) 

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