domingo, 30 de maio de 2021

Aonde foi a formiga?

Solitária, a formiga vaga sobre a mesa. “Essa imensidão bege, sem vida, o que é?” É a mesa onde executo minhas burocracias, onde deixo um pouco de mim todos os dias, cara formiga... Um ranço toma conta do ambiente: o sujeito no balcão deve ter rompido relações com o chuveiro, há séculos. Sem tirar os olhos da formiguinha, tento me acostumar ao odor. Enfim a criatura, grosseiramente, se vai.

O sistema trava, parece que vai reanimar, cai. Retornará minutos depois, lento e em frangalhos. Está assim há meses. Parece bambu ao vento: enverga, enverga tanto... um dia tombará. E, então, voltaremos ao tempo das Olivetti, do papel carbono, do mata-borrão, do lápis borracha, dos mimeógrafos que embriagavam os quatros cantos do prédio.

A formiga passeia entre os fios do mouse e do scanner, vai e volta, indiferente à burocracia dos escaninhos, às novas portarias, ao papo repetitivo de toda tarde: a vacina está demorando; nesse ritmo vamos vacinar só ano que vem; o presidente tá certo quando diz pra acabar com essa frescura de isolamento; pandemia não existe, é tudo invenção pra derrubar o governo; eu vou pra praia no feriadão e dane-se o corona, cansei disso... A formiguinha não se cansa de zanzar pela mesa. Deve ser bom ser inseto, viver longe das sandices e idiotias presidenciais, alheio às regras inúteis que sufocam o cotidiano. Ah, como eu invejei Gregor Samsa naquela noite em que o conheci.

O céu se veste de azul, parece não se lembrar de trazer chuva. Alguém comenta que está dando banho de torneira nos santos, que seu São Pedro está até branquinho. Outra recorda a avó, que colocava sal grosso em um pires branco para chamar as chuvas. Do balcão, o advogado afirma: a previsão é de tempo firme e muito seco para o resto do mês. Olho pela janela. A moto da pizza corta a Theophile Dubreil: promoção, superpromoção. A bandeira de Minas baila no pátio do Ministério Público. Minha caneta cai no chão. Na estante de aço, o relógio marca o tempo. Um moço cheirando a Malbec passa no corredor. A formiga ziguezagueia perto do grampeador. Oh, como detesto o bege-hospital dessas mesas e paredes, eternamente tingindo de desânimo minhas tardes. Certa vez, um camarada que aguardava atendimento sentenciou: isso aqui brocha a gente.

A formiga para perto do livro de ofícios. Estou anotando as últimas solicitações que expedi ao INSS e à Prefeitura. Os entendidos voltam a deliberar sobre a (in)existência do vírus, questionam agora os óbitos divulgados na tevê, falam nas eleições do próximo ano e que “o voto deve ser em cédula”. O pessoal do fã clube do Jair é foda. Sem querer, troquei o número do último ofício: era para escrever 17, lasquei 171. A carga da BIC acabou (BIC que comprei porque as canetas vencedoras da licitação... misericórdia! como dizia uma ex-colega).

As palavras escorrem burocraticamente da nova caneta como água em cano trincado. Essa eu ganhei da agência que me levou a Poços de Caldas. Não presto mais atenção ao que as tietes dizem. A formiga sumiu. Aonde foi? Se voltar, vou lhe ofertar um pouco do açúcar que cobre as casadinhas que eu trouxe para o lanche. Nos tempos em que desconhecia a burocracia e, portanto, era mais feliz, eu chamava casadinhas de merenda. Naquela época, não escrevia sobre formigas, mesas, paredes, tempo, governos e conversa fiada. Meus textos falavam de reinos distantes, heróis, fadas, gnomos, bruxas, Pégaso, Tiamat, Godzilla e os monstros enfurecidos por Satan Goss... A caneta cai novamente. Aonde foi a formiga? 

 

Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor

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