Não estou para leituras nesta noite. Embora sem sono, não estou para leituras. Os olhos ainda não ardem de cansaço e descrença, como invariavelmente acontece nestas horas, mas não estou para leituras. Nesta noite gelada de agosto, o vento rasga o céu, açoita as janelas, inquieta-me. Por isso, não estou para leituras.
Olho a estante. Crônicas em noites como esta não me despertam interesse. Ao contrário, podem me conduzir por caminhos mais aterradores, sobretudo se fizerem conjecturas sobre o tempo e sua incontrolável passagem. Textos que falam de outrora agravam minha impotência em relação à vida. Por outro lado, se tratarem dos tempos hodiernos... ah, o azedume me consumirá e botará abaixo o pouco de equilíbrio que me resta. Não estou para reflexões, portanto, crônicas estão proibidas nesta noite.
Contos, talvez, me acalmassem se contivessem menos dramas e narrassem mais aventuras rocambolescas. Mas não tenho contos assim: enchi minhas prateleiras com demasiadas filosofias e racionalidades que me atormentam a alma. Os textos que preciso ler, não os tenho; e os que tenho, rejeito-os como um exorcista esconjura o Mal. Contos, pois, estão banidos nesta noite.
Romances há aos montes. Tantos e de temas tão variados que às vezes me custa escolher um. Contudo, ultimamente não estou tendo sorte nas escolhas. Ora me vem às mãos excessos de erudição, noutras parágrafos intermináveis. Aborreço-me e, ainda que não abandone a leitura, arrasto-a nas manhãs de sol fraco, silêncio e pandemia. Deixo, pois, os romances numa prateleira qualquer, quietos como cupinzeiros no pasto.
Poesia também não me falta. Tenho muito livros novos, alguns ainda na embalagem. Confesso: me tornei tardiamente leitor de poemas. E, em uma tentativa vã de recuperar o tempo perdido (ou, melhor dizendo, consumido em prosa), compro compulsivamente poesia de vários gêneros e épocas. Ontem li Adélia e Bilac; anteontem, Manoel de Barros e Adelaide Ivánova; semana passada, poetas cujos nomes não memorizei. Todavia, nesta noite não quero rimas, métricas, redondilhas, sonetos, aliterações, hipérboles.... nada que me lembre um verso (branco, marrom ou vermelho-sangue). Preciso evitar que os versos alheios me deem ânsias de escrever. Não desgosto de meus poemas. Porém, como quase sempre a poesia me assalta estouvada feito o furacão que levou Dorothy a Oz, tenho escrito em grande quantidade. Aumentei minha produção, porém não soube aumentar minha produtividade. E como até o mais medíocre dos economistas sabe, isso não é bom. A que ponto cheguei: emprego conceitos de economia para contabilizar poesia... ando mesmo mal, em déficit com as Musas.
A noite gélida que embelezou o luar, e trouxe-me soluços angustiantes que custam a cessar, não quer me ver preso às letras alheias. Não me quer também rascunhando poeminhas ordinários sobre o tempo e melancolias sobre o viver. Porém, é inútil: quando me faltam o sono e a tranquilidade, me visto de nostalgia e, armado com caneta e lápis, avanço de encontro aos moinhos de vento. Assim, maculando as alvas folhas, canso vistas, punhos e dedos para, ao cabo, produzir um amontoado de bobagens que, na melhor das hipóteses, servirá para compor uma ou duas linhas de uma crônica qualquer.
* escrito em 01/08/2020
Texto: Raphael Cerqueira Silva
Foto: acervo do autor
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