domingo, 13 de junho de 2021

Sexagésima sexta noite

 

                Angustiado de novo. É a sexagésima sexta noite da quarentena.  À varanda, senti a chuva que se aproxima, ouvi o carrilhão da Santo Antônio anunciar nove horas.  De algum apartamento vizinho vem esse cheiro enjoativo de pipoca de micro-ondas... Confinados, estamos todos à base de filmes e pipocas.

                No quarto, procuro palavras coloridas. Caço Manoel de Barros na estante. Abro-o aleatoriamente: página 44. O pensamento regressa àquela tarde em Viçosa quando comprei estas “Memórias Inventadas”. Dia quente, muita luz, frescor n’alma... Revejo-me sentado à poltrona 27 do Unida, lendo Manoel, alheio ao falatório dos passageiros. Calor, ônibus, juventude... fui transportado aos meus policromados sonhos de menino. O sol me bulia através da janela, os pássaros e rios pantaneiros me seduziam a cada virar de página. Em casa, notei: metade do meu rosto estava avermelhada.  

                Maravilhado, li quase todo o livro. As palavras, as ideias, a tarde, até o ruído do motor irmanavam-se com meus pensamentos. Desembarquei na rodoviária quase vazia. Um cão ressonava sob as cadeiras quebradas, um infeliz falava às paredes, a televisão exibia a novela para ninguém. A mochila não me pesava mais. O sol, que desfilava harmônico pela avenida,  me inspirou novos sonhos. Que, felizmente, não ficaram escamoteados na lembrança, como tantos outros. Estão hibernando, à espera da estação certa para florescer. São sonhos que também estão sonhando...

                A chuva ê vem, como diziam lá onde morei. Deixei o livro. Peguei caneta e caderno. Há silêncio enquanto escrevo. Demasiado silêncio. Escrevo para tentar conter a angústia. Tomara que a chuva banhe meus sonhos. E quando tudo isso passar, que eles floresçam e me revelem seus sonhos. Assim, juntarei meus sonhos aos sonhos sonhados pelos meus sonhos. Para que eu possa, então, dizer: valeu a espera. Porque deve haver sentido em tudo isso...

“Eu queria só descobrir e não descrever”, disse o poeta. Acredito que vou descobrir. Espero não seja necessário descrever. Pois descrever enclausura a palavra. Enrijece o sonhado, sufoca o ser. Descrever é ato frio. Deixo, pois, a descrição aos médicos e suas receitas, aos togados e suas sentenças, aos burocratas e suas normas.

Nesta noite de sábado, sexagésima sexta noite da quarentena, escrevo à margem do caderno um comando para mim mesmo: sonhe, menino. Talvez possa, ao menos, sufocar esta angústia.

 

*escrita em 24/05/2020

Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor (Visconde do Rio Branco) 

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