Na esquina da Anita Garibaldi com a Tonelero, eu esperava minha refeição e lia o G1. Na mesa ao lado, dois homens bebiam chope e comiam tira-gosto. Falavam muito alto, não pude deixar de prestar atenção.
_ Duas coisas me dão medo nessa vida: uma, enlouquecer. Tenho alguns doidos na família; meu avô chegou a ser internado em Barbacena... os fardados também me dão medo. Aliás, tenho muito medo de tudo o que acompanha o pacote militar: armas, hierarquia, nacionalismo e conservadorismo exacerbados, autoritarismo, discurso belicista, certa paranoia em enxergar inimigos em todo canto... A tal ponto vai meu temor que sequer passo em frente a um quartel e desvio o olhar se vejo militares circulando pelas ruas. Sou assim desde meus tempos de moço, quando ainda vivia lá em Minas.
_ Besteira. Você vê televisão demais. Já falei que a mídia é contra a ordem e a disciplina, a favor da bandidagem... Eu tenho medo dos togados, que criam exegeses para tudo e decidem destinos e liberdades. Medo das suas jurisprudências marotas, sempre preenchendo lacunas conforme interesses de A ou B. Medo também dos tais “entendimentos”, que mudam de rumo como o vento e de humor como o mar... Essa gente, de tempos em tempos, deveria ser substituída como as fraldas dos bebês.
Um copo espatifou-se perto do balcão. A cerveja tingiu o piso branco. Seu Clístenes, habitué dos bares de Copacabana, secava o suor da testa com o dorso da mão, desculpava-se sem parar. Pareceu-me meio desarvorado. O atendente foi à cozinha; voltou com uma vassoura e uma pá de plástico... Perdi parte da conversa na mesa ao lado.
_ O poder da arma pode, temporariamente, calar a nação. Isso às vezes é até necessário, para destruir o inimigo, evitar o caos e garantir o progresso. Todavia, as decisões proferidas nos gabinetes, ao som de indolentes canetas, são mais belicosas que as pistolas e a ideologia da caserna. Tem sido assim há tempos... porém, essa corja reescreveu a história nos últimos anos e, com o conluio da mídia, doutrinou o povo. Por isso, hoje em dia ninguém respeita a ordem e a hierarquia... renegam os símbolos nacionais, a própria pátria.
O celular tocou: bom dia, vou estar passando os novos planos da... desliguei. Não ouvi o que o mineiro retrucara. O palestrinha afrouxou a gravata, bebericou e prosseguiu:
_ Alguém disse, alhures: a força da palavra é infinitamente mais destrutiva que o tiro de fuzil. A arma fere, pode até matar alguns... afinal, na guerra não se pode ter céu limpo todos os dias. A palavra, por outro lado, castra o espírito; cala, angustia, corrompe, traumatiza, tolhe a liberdade, física e psíquica. A palavra age nos gabinetes e palácios, em surdina; é traiçoeira como a serpente e, portanto, impossível ser derrotada. O povo pode fazer passeata, piquete, panelaço, apelar para esse papo furado de voto e eleição, bradar nas redes sociais... nada disso destrona a palavra. Esses jornais que você lê estão cheios de exemplos: quem manda não é o povo, é quem tem caneta e cacife para encomendar as decisões. Basta saber ler nas entrelinhas... E não se esqueça: foram as palavras que selaram o destino de Cristo, não a força; esta foi apenas o meio de execução. Por isso, precisamos de um governo com mais pulso, que assuma as rédeas e...
O garçom trouxe meu pê-efe e minha coca. O palestrinha, com o celular na mão, dava gaitadas. A julgar pelo som, acho que assistia a algum vídeo. Também chegavam em meu WhatsApp vídeos com a carantonha do Mito sempre a bradar falácias... O mineiro, sem tirar os olhos do companheiro, tomava o chope.
Texto: Raphael Cerqueira Silva
Foto: acervo do autor (Rio de Janeiro)
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