domingo, 29 de agosto de 2021

O escadão do Alto da Boa Vista

Deu na Voz de Rio Branco, edição 1273: “a escadaria que interliga a av. Dr. Carlos Soares (Rua Nova) ao Alto da Boa Vista foi toda pintada em cores vivas e alegres e em muitos de seus 72 degraus foram inscritos nomes de rio-branquenses que se destacaram e muito contribuíram para áreas educacional, artística e cultural da cidade.” Durante muito tempo, de tanto passar por ali, fiquei íntimo do escadão. Que me perdoe a Voz, mas não consigo chamá-lo escadaria. “Escadão”, assim o povo do morro o chama. Assim aprendi a chamá-lo desde que cheguei a esta terra.

Fato curioso: setenta e dois degraus. Quando passava por ali, nunca parei para contá-los: minha curiosidade canalizava-se para os romances literários, os problemas matemáticos, as regras e sutilezas da gramática... Pelo escadão eu descia emburrado de manhã e retornava das aulas no começo da tarde, cansado e com fome; às vezes acompanhado, na maioria das vezes só. “Só” é um modo de dizer, pois eu levava a mochila cheia de apostilas e livros, a cabeça lotada de estórias, equações, versos. Sem contar os sonhos, muitos sonhos… e quem os tem nunca está só.

Às vésperas das férias, eu descia o escadão soprando vapores mornos para o céu cinzento, emulando os fumantes dos filmes em preto e branco. Manhãs frias + corpo quente + sono = “fumacinha” ao ar. Eu vinha do morro feito uma locomotiva velha, repassando mentalmente as fórmulas e as figuras de linguagem que decorara para a prova... nos dias quentes não era fácil encarar aqueles degraus: o suor escorria do cabelo, descia à testa e, quando não inundava os óculos, desaguava nas rachaduras e nos buracos do escadão. Ah, o pobre escadão, durante muito tempo, ficou esquecido pelas autoridades, cercado de lixo e entulho, com vários degraus quebrados donde brotavam matinhos meio zombeteiros.

Quando as aulas terminavam mais cedo, eu cruzava com pessoas que voltavam da Vaca Mecânica; muitas largavam as sacolinhas no chão, e restos de leite e soja escorriam vagarosamente pelos degraus… Tanta gente passava por ali: gente nova e gente velha, gente apressada ou com a vida ganha, moleque atrás de pipa, menina de uniforme da Escola Normal, lavadeiras com trouxa na cabeça, vizinhos, gente que empacava na minha frente para tomar fôlego e reclamar do joelho e da vida, gente de cara amarrada, bêbados, gente estranha e gente conhecida, baratas cascudas, vira-latas, gatos vadios, aranhas caranguejeiras, ratos, gambá...

Tantas vezes passei pelo escadão atento à ventania que sacolejava as mangueiras dos quintais, torcendo para o toró não me pegar no caminho; preocupado com os testes e o vestibular; de butuca na conversa dos que subiam à minha frente; temeroso de cair e me estropiar lá embaixo (eu sempre imaginava que um dia, ao descer, tropeçaria nalgum buraco e me esborracharia no asfalto como o sapo da fábula). Nos tempos em que a vaidade me exigia “manter o físico”, eu caminhava na avenida ao entardecer. Na volta, subia correndo o escadão me sentindo o Rocky Balboa... quando jovem imaginamos tanta bobagem! Por isso, tem razão o poeta: à juventude, tudo há de ser permitido.

Ao ler a Voz, fiquei sabendo: “a referida escadaria é de meados da década de 1960 (...) o prefeito Dr. Paulo Amin a construiu atendendo assim à justa reivindicação dos moradores do Alto da Boa Vista, para encurtar o caminho para a Rua Nova, de tradição no comércio.” Como forasteiro que aqui desembarcou há mais de vinte anos, pouco sei da história local. Mas, uma coisa sei: o escadão, que me viu passar por ali durante anos, tem muitas histórias para contar. 

 


 Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor

domingo, 22 de agosto de 2021

Tudo tem dois lados

 

         O sol tomba no chão rubro de sangue. Há sangue por todos os lados: no planalto, sob as estátuas chamuscadas, nos adros, nos jardins, nas câmaras, nas fazendas do agronegócio, nas salas de estar dos cidadãos de bem, nos gabinetes, nos puteiros, entre os livros tombados em desuso, nos discursos moralistas, no canto de artistas de bota e chapéu, nos corredores forenses e hospitalares... O país sangra. Como o touro alanceado na arena. O país sangra. A plateia, extasiada, urra e aplaude. O touro bravamente resiste, suportando sua sina. Lentamente, o país sangra. O toureiro, no afã de sagrar-se campeão, desfere implacável golpe. Olé, grita a patuleia agitada. O país esvai-se em sangue. Aplausos.

         Nos tempos de escola aprendi que sangramentos contínuos, se não estancados, levam ao óbito. Não sei se entendi direito a lição de ciências, talvez não me ensinaram corretamente... Tudo tem dois lados, como as moedas que eu usava para comprar chiclete na venda. Noutro dia, nevou em Gramado e Canela; vi na internet um monte de panguá aglomerado nas ruas, olhando o céu e rindo e saltitando na neve, esquecidos dos protocolos que os novos tempos exigem. Lembrei também de uma aula de geografia: o Brasil, localizado abaixo da linha do Equador, possui clima tropical e, portanto, em seu espaço territorial não há formação de neve, como ocorre nos países do hemisfério norte, de clima predominantemente temperado. Ou não aprendi corretamente a lição ou me ensinaram errado... Tudo tem dois lados, como aquela borracha azul e rosa da Mercur que manchava meu caderno.

         Voltando ao sangramento – quase hemorragia – entendi o significado da expressão “boi de piranha” ao assistir Pantanal: em certo capítulo, a peonada precisava atravessar o rio. Para salvar a boiada da fúria das piranhas, feriram um boi e atiraram-no rio acima. A comitiva de Seu José Leôncio passou então, incólume, enquanto as piranhas devoravam o animal. Sacrificou-se, assim, um bicho velho ou doente para preservar a boiada... Ainda não sei quem é o boi de piranha da vez; talvez tenhamos vários sacrificados pois, conforme a voracidade do cardume, será necessário imolar mais de um membro do gado. A comitiva passa. Da janela, observo.

         Por ora, o que vejo é o touro esmorecendo, o chão da arena tetricamente rubro e o toureiro, como um bufão, rindo extasiado com os hurras e vivas e aplausos da plateia. Mas, tudo tem dois lados e há aqueles que, como Dom Afonso da Maia, acreditam na vantagem da tourada: “É ser uma grande escola de força, de coragem e de destreza...”.

          



 Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor 

quinta-feira, 12 de agosto de 2021

AOS POUCOS, FICAMOS ÓRFÃOS

O dia amanheceu ensolarado. Quem diria que depois da ventania de ontem à noite, a manhã se derramaria amena. Aos poucos, o sol tomava para si as cerâmicas da varanda. Não liguei o televisor - raramente o faço pela manhã -, também não corri os olhos pelas redes sociais; respondi apenas duas mensagens desnecessárias no WhatsApp. Sentei-me à sala para reler O Morro dos Ventos Uivantes. Entre um parágrafo e outro, minha mente retornava aos desencontros e atropelos burocráticos de ontem...

Os sinos das igrejas anunciavam o meio do dia quando cheguei ao trabalho. Enquanto esperava o computador ligar, uma colega comentou comigo: Tarcísio Meira faleceu. Comentou porque sabe que sou noveleiro. Embora eu já soubesse que o Tarcisão estava internado e entubado por complicações decorrentes da COVID-19, a gente sempre nutre um cadinho de esperança...

A tarde passou, arrastada como sempre. Mais do mesmo, como diria minha professora: mais burocracia, mais negacionismo, mais falácias, mais prazos vencidos para certificar, mais audiências para redesignar, mais biscoitos para roer na hora do café... a gente se acostuma. O jogo é sempre o mesmo e este reles peão já entendeu: é mera e dispensável peça no tabuleiro. A gente se acostuma. Mas não devia, como diz aquela crônica da Marina Colasanti.

Sem acesso à internet, não pude checar as notícias sobre a partida do Tarcísio, que marcou gerações de noveleiros com seu carisma, seu talento, seu charme, seu jeitão próprio de dar vida a personagens tão diferentes entre si... foi mocinho, jagunço, político corrupto, vampiro, empresário, lorde britânico, vilão, filho, pai e avô. Tarcísio é daqueles atores que, mesmo calado em cena, captura nossa atenção só com o olhar ou o sorriso. Enquanto escrevo esta crônica, me vem à memória a minissérie A Muralha. Tarcisão vivia o asqueroso e inesquecível Dom Jerônimo; para mim, um de seus melhores momentos na telinha. 

Tarcísio Meira vai fazer falta. Muita falta. E acho que, nesse caso, a gente não se acostuma. Ainda bem que temos o Youtube e o Globoplay para podermos rever grandes momentos da nossa teledramaturgia. Ontem mesmo à noite, enquanto o vento açoitava a janela do quarto e eu tentava desanuviar os pensamentos, assisti a mais um capítulo de A Favorita, onde Tarcísio disputou com Mauro Mendonça o amor de Glória Menezes. 

Aos poucos, a televisão e, consequentemente, os telespectadores vamos ficando órfãos dos grandes atores. Quem diria que um dia que nasceu tão reluzente fosse terminar enlutado. Esse ano, assim como o passado, não está sendo fácil.

 

Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor

segunda-feira, 9 de agosto de 2021

A gente sonha com cada coisa

 

                A noite desce fria e silenciosa.  O vento ainda brinca nas janelas.  Minhas vistas estão um pouco irritadas: não sei se um resfriado se aproxima ou se li demais durante o dia. Ligo a televisão. Luís Ricardo apresenta o sorteio da Tele Sena. Como diria um antigo comercial: o tempo passa, o tempo voa... E as bolinhas numeradas continuam a girar e a girar, como faziam nos meus tempos de menino. Antigamente, minha gente comprava Tele Sena. Hoje, temos esperança em quase nada.

          Ajeito o cobertor sobre o corpo.  A mãe, vira e mexe, recorda um antigo comercial das Pernambucanas sobre o frio que bate à porta e quer, a todo custo, entrar... lembro o jingle enquanto me cubro até o pescoço. Este velho cobertor, sem querer, me trouxe reminiscências da infância... Ajeito também as almofadas. Limpo as lentes dos óculos, em vão: meus olhos estão ligeiramente irritados desde antes da janta. Acho que um resfriado bravo vem aí... Olho para uma traça que, lenta e insistentemente, sobe pela parede. Já a derrubei mais cedo e, mesmo assim, voltou a escalar. Persistentemente. Parece até atleta olímpico.

      A noite vai esfriando ainda mais. Notificações chegam à tela do celular, mas recuso a olhá-las. Já cansei de ver vídeos do Tik Tok e fotos de gente sorridente à beira mar. Que fiquem com seu sorriso Doriana e sua praia e seus corpos sarados pra lá... não lhes darei meu like. Quero apenas terminar minha noite, sossegado, vendo televisão.

       Oito horas. “Agora é hora de alegria, vamos sorrir e brincar...” Sílvio Santos entra diferente no auditório: de pijama. Um simpático pijama branco com listras pretas. Parece um avô que vem contar histórias para o neto ao pé da cama. Neste domingo dos pais, frio e silencioso, Sílvio recebe suas colegas de trabalho assim: íntimo. Quando criança, sonhei em frequentar seu auditório e trazer para casa um aviãozinho de cem reais. Menino sonha com cada coisa!

      Também estou com meu pijama. Enrolado no cobertor e de pijama. Final de semana gelado pede cobertor, cama e pijama. Ah, se eu pudesse emendava este domingo ao outro e ao outro, emendava os dias nas noites e, assim, levava o agosto até às barbas do feriadão de sete de setembro. Pra ficar só deitado, lendo e vendo televisão. Nada de vestir a fantasia da sociabilidade, andar pelas ruas que nada me dizem, sujeitar-me às engessadas e pavorosas regras da burocracia, gastar meu tempo com portarias e relatórios e certidões e provimentos e metas... Passar os dias e as noites deitado, de pijama, enrolado no cobertor... Adulto sonha com cada coisa!

       As noites de domingo costumam ser angustiantes: lembram-me, de um jeito bruto, que na segunda começa tudo outra vez. Quem inventou o trabalho não tinha mais o que fazer, li certa vez em um para-choque de caminhão... As pancadas na janela não cessam. Não adianta bater, eu não vou deixar você entrar, tenho ganas de gritar para o vento. Mas não ouso. Prefiro aumentar o som da televisão.

O tempo passa, o tempo voa, já não temos mais a poupança Bamerindus – aliás, nem sei se ainda me restam alguns reais na poupança – e eu continuo aqui: enrolado neste velho cobertor, de pijama, assistindo ao Sílvio Santos.


Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: internet

quinta-feira, 5 de agosto de 2021

O IMPORTANTE É COMPETIR

 

         Dizem: o importante é competir. Em tempos de Olimpíadas (até a Praça 28 de Setembro se enfeitou com os anéis olímpicos) esse lema volta à moda. Como não entendo nada de esportes (fui daqueles alunos que odiava aulas de educação física), costumo competir noutra área.

         Recentemente, me inscrevi em um concurso de poesia. Enviaram-me o edital pelo WhatsApp, me interessei e coloquei a cabeça para pensar. Tentei compor um poema cujo tema fosse “esperançar”, como exigiu o edital, que partiu da frase de Paulo Freire: “É preciso ter esperança, mas ter esperança do verbo esperançar; porque tem gente que tem esperança do verbo esperar. E esperança do verbo esperar não é esperança, é espera. Esperançar é se levantar, esperançar é ir atrás, esperançar é construir, esperançar é não desistir! Esperançar é levar adiante, esperançar é juntar-se com outros para fazer de outro modo...”. Pelejei, escrevi, reescrevi, rabisquei, cortei adjetivos e verbos, amassei um monte de papel... difícil para mim falar de esperançar, concluí. Primeiro, porque vivemos tempos áridos. E porque me dei conta que até hoje não li um parágrafo sequer de Paulo Freire. Só o conheço de citações que, volta e meia, passam pelo feed de minhas redes sociais.

         Assim, foi muito atrevimento de minha parte escrever um poema – que por si só já é uma tarefa árdua – baseado em um autor que nunca li. E ainda por cima usar um verbo que, até ler o edital do concurso, eu desconhecia. Esperançar... palavra forte, incômoda, sobretudo para quem, como eu, apenas espera... Vivendo e aprendendo, como diria o outro.

Mas, como o importante é competir, este atrevido que vos escreve acabou produzindo um poeminha, e se inscreveu. Um poeminha meia boca, mequetrefe mesmo. Mambembe, seria assim chamado se ainda usassem esse termo... Os atrevidos e os competidores são assim: metem a cara, chutam pro gol e dane-se se vão pontuar. Como eu quero mais é botar meu bloco na rua, e não me importa o que vão pensar de mim, segue o poema “Esperançar” para a apreciação dos leitores:

 

O verbo esperançar

carrega consigo

a imensidão da utopia...

Paulo Freire o conjugou.

Vamos também?

 

         O resultado do concurso saiu esta semana. Como esperado, não pontuei. Aliás, não é a primeira vez que passo longe da lista de classificados. Não me importo. Sigo o lema: o importante é competir.  

 

 


 

Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor 

Outra vez no cinema

            Viu nas redes sociais que está em cartaz o novo longa dos Caça-Fantasmas. Nessas horas servem pra alguma coisa útil, essas redes...