Deu na Voz de Rio Branco, edição 1273: “a escadaria que interliga a av. Dr. Carlos Soares (Rua Nova) ao Alto da Boa Vista foi toda pintada em cores vivas e alegres e em muitos de seus 72 degraus foram inscritos nomes de rio-branquenses que se destacaram e muito contribuíram para áreas educacional, artística e cultural da cidade.” Durante muito tempo, de tanto passar por ali, fiquei íntimo do escadão. Que me perdoe a Voz, mas não consigo chamá-lo escadaria. “Escadão”, assim o povo do morro o chama. Assim aprendi a chamá-lo desde que cheguei a esta terra.
Fato curioso: setenta e dois degraus. Quando passava por ali, nunca parei para contá-los: minha curiosidade canalizava-se para os romances literários, os problemas matemáticos, as regras e sutilezas da gramática... Pelo escadão eu descia emburrado de manhã e retornava das aulas no começo da tarde, cansado e com fome; às vezes acompanhado, na maioria das vezes só. “Só” é um modo de dizer, pois eu levava a mochila cheia de apostilas e livros, a cabeça lotada de estórias, equações, versos. Sem contar os sonhos, muitos sonhos… e quem os tem nunca está só.
Às vésperas das férias, eu descia o escadão soprando vapores mornos para o céu cinzento, emulando os fumantes dos filmes em preto e branco. Manhãs frias + corpo quente + sono = “fumacinha” ao ar. Eu vinha do morro feito uma locomotiva velha, repassando mentalmente as fórmulas e as figuras de linguagem que decorara para a prova... nos dias quentes não era fácil encarar aqueles degraus: o suor escorria do cabelo, descia à testa e, quando não inundava os óculos, desaguava nas rachaduras e nos buracos do escadão. Ah, o pobre escadão, durante muito tempo, ficou esquecido pelas autoridades, cercado de lixo e entulho, com vários degraus quebrados donde brotavam matinhos meio zombeteiros.
Quando as aulas terminavam mais cedo, eu cruzava com pessoas que voltavam da Vaca Mecânica; muitas largavam as sacolinhas no chão, e restos de leite e soja escorriam vagarosamente pelos degraus… Tanta gente passava por ali: gente nova e gente velha, gente apressada ou com a vida ganha, moleque atrás de pipa, menina de uniforme da Escola Normal, lavadeiras com trouxa na cabeça, vizinhos, gente que empacava na minha frente para tomar fôlego e reclamar do joelho e da vida, gente de cara amarrada, bêbados, gente estranha e gente conhecida, baratas cascudas, vira-latas, gatos vadios, aranhas caranguejeiras, ratos, gambá...
Tantas vezes passei pelo escadão atento à ventania que sacolejava as mangueiras dos quintais, torcendo para o toró não me pegar no caminho; preocupado com os testes e o vestibular; de butuca na conversa dos que subiam à minha frente; temeroso de cair e me estropiar lá embaixo (eu sempre imaginava que um dia, ao descer, tropeçaria nalgum buraco e me esborracharia no asfalto como o sapo da fábula). Nos tempos em que a vaidade me exigia “manter o físico”, eu caminhava na avenida ao entardecer. Na volta, subia correndo o escadão me sentindo o Rocky Balboa... quando jovem imaginamos tanta bobagem! Por isso, tem razão o poeta: à juventude, tudo há de ser permitido.
Ao ler a Voz, fiquei sabendo: “a referida escadaria é de meados da década de 1960 (...) o prefeito Dr. Paulo Amin a construiu atendendo assim à justa reivindicação dos moradores do Alto da Boa Vista, para encurtar o caminho para a Rua Nova, de tradição no comércio.” Como forasteiro que aqui desembarcou há mais de vinte anos, pouco sei da história local. Mas, uma coisa sei: o escadão, que me viu passar por ali durante anos, tem muitas histórias para contar.
Texto: Raphael Cerqueira Silva
Foto: acervo do autor