domingo, 10 de julho de 2022

FLANANDO

    Tiro a tarde para bater perna. Solzinho outonal bulindo no moletom, vento desalinhando os cabelos carentes de tesoura, eu vou. Por que não? Há tempos não me dou o direito de flanar pelas ruas. Leve como o colibri, sonso como o menino que matou aula, eu vou.
    Uma dona, dessas que se maquiam e pintam o cabelo e mesmo assim permanecem com cara de coruja, salta à minha frente, feito o boneco do Pula Pirata. Donde saiu, não sei, também não paro para conjecturar. Vem oferecer empréstimo consignado, me chama de senhor. Tô com pressa, rosno. Além de cara de coruja, inconveniente: ousa estragar meu dia com conversa fiada e ainda me chama de senhor... ah, vá catar coquinho.
    O pacote médio, bota bastante sal e queijinho, faz favor. O pipoqueiro capricha no sal; quanto ao queijo, não dá nem pra tapar o buraco do dente, como dizia vovó. Em frente ao teatro, o hippie tenta convencer o rapaz que, se der mais desconto no cordão, vou ficar no total preju, bicho. Sigo pelo calçadão, comendo as pipocas, olhando vitrines. Na porta da Americanas um bêbado berra tenho fome, tenho fome. Fome de cana, alguém diz ao passar apressado por mim.
    Entro na galeria; não vou comprar nada, mas olhar (ainda) não paga imposto. Uma moça, idêntica à secretária dos Caça-Fantasmas, se aproxima, me oferece amostras de perfume. Ai, por que fui aceitar? Ela desanda a falar das fragrâncias, que são artesanais, muita gente tá comprando pro dia dos namorados. Sou solteiro, explico, na tentativa de escapar do lero-lero. Ah, mas quem usa os meus perfumes não fica sozinho, além do quê um homem perfumado fica mais charmoso... antes que minha carência se agarre a esse adverbiozinho matreiro, sarto de banda: qualquer coisa eu volto aqui. A escada rolante me leva, não entendo minha frase à la Patropi; a Janine da galeria entendeu, a julgar pela cara que fez.
    Os tênis na vitrine me seduzem. Bom dia, precisando é só chamar, diz o vendedor. Agradeço. Eu tô aqui, tá; se quiser entrar, temos outros modelos. Que está ali, eu sei, impossível não notá-lo plantado ao meu lado. Temos promoção de outras marcas aqui dentro da loja. OK, e lá vou eu... nem olhar sossegado uma vitrine a gente pode, credo.
    No cinema, Pete “Maverick” Mitchell e um enorme caça em contraste com o amarelo poente ao fundo. Belo cartaz, belo e eficiente: em Mach 10, as lembranças da meninice voam diante das minhas lentes... ah nas tardes ociosas, eu assistia Top Gun largado no sofá, sonhando ter os óculos, o blusão e a moto do Tom Cruise para conquistar uma gatinha como aquela do filme e trocar beijos de tirar o fôlego ao som de Take My Breath Away... No cinema ninguém vai me atazanar.
    À minha frente, um casal não se decide entre o filme dublado ou o legendado. O atendente olha a fila eu, o relógio. A mulher, enfim, bate o martelo: dublado, pô. Inicia-se outro dilema: as poltronas. O sujeito percorre com o indicador a tela do monitor, parece jogar batalha naval. Sem opção, espero. L9 e L10, a mulher diz ao atendente. Mas, amorzinho, a fila M é melhor... L9 e L10, a mulher sentencia. Próximo. Custou hein, digo ao atendente. Seu sorriso me diz muito sobre sua rotina.
    Na fila da pipoca, o mesmo casal: é hoje, penso. Novo impasse: combo de pipoca + refri + chocolate ou os produtos separados. Os minutos avançam, antevejo a sessão iniciada, a sala escura, o filme rolando, tropeço nalgum degrau, esparramo as pipocas no chão, atrapalho os espectadores porque um casal irresoluto não sabe nem o que vai comer... A atendente também não ajuda: demora séculos para entregar o combo, emitir a nota fiscal, dar o troco. Próximo.
    Minha vez, finalmente. Pipoca de 12, 14 ou 20, senhor? A menor, faz favor. A de 14 é praticamente do mesmo tamanho, sai mais em conta, senhor. A de 12, mesmo. A lerda digita qualquer coisa. Refrigerante, senhor? Não. Suco? Não, nem água. Vai comer a pipoca sem beber nada? Miro bem nos seus olhos: vou, sim! Então, por que o senhor não compra as balinhas que tão na promoção... não entendo a relação das balinhas com o fato de eu não comprar algo para beber. Não, não. Olho para os lados, saguão e corredores vazios: ai, a sessão começou. O senhor não prefere o combo com... Minha filha, o senhor aqui tem um encontro com o Senhor Cruise; fica com as pipocas e as balinhas. Ela deixa um “mas” aparvalhado cair no balcão, não quero ouvir mais nada. Voo pelo corredor para não perder o início do filme.



Texto: Raphael Cerqueira Silva
Foto: acervo do autor 

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