domingo, 14 de fevereiro de 2021

Boa companhia


        Em cartaz na Netflix: Relatos do Mundo. Nesta noite em que a chuva ronda e a brisa antecipa o cheirinho de outono, topei a sugestão do streaming e fui assistir ao faroeste. Tom Hanks é um veterano da guerra que viaja de cidade em cidade lendo as notícias dos jornais para as pessoas. Em troca de moedas, o capitão Jefferson Kyle Kidd transita por lugares perdidos do Texas narrando ao povo os relatos do mundo. Nessas andanças, o velho Capitão encontra uma menina perdida que se comunica apenas em uma língua indígena. Decidido a levá-la aos seus familiares, Kid enfrentará obstáculos típicos de um bom western.

          Enquanto a sexta de carnaval se exauria e a brisa úmida brincava na cortina, a vastidão do oeste se desenrolava na minha tela e os tiros de Hanks ricocheteavam aqui e ali. Findo o filme, fiquei a cismar qual o primeiro faroeste a que assisti na vida.  Certamente não foi no cinema: sou da época em que Hollywood já não investia seus preciosos dólares nessas produções. Foi na televisão, sem dúvida. Provavelmente no meio de uma tarde modorrenta, talvez na tela da Manchete que sempre reprisava esse gênero. Mas não era apenas a emissora do Bloch que exibia cowboys e apaches; praticamente toda semana as tevês exibiam um bang bang. Nessas sessões vespertinas conheci John Wayne, Kirk Douglas, Clint Eastwood, Robert Redford e outros cowboys dos quais não me recordo os nomes. Lembro alguns títulos: Rastros de ódio, Santa Fé, Caminhos Ásperos, Por um punhado de dólares, Os filhos de Kate Elder... mas os filmes são tão parecidos que acabo misturando na memória títulos e atores.              

Noutros tempos, as ruas estariam lotadas e insuportavelmente barulhentas. Seria carnaval e, com toda certeza, eu não encararia duas horas de filme. Não com as janelas tremendo ao som dos funks e bate-estacas carnavalescos (?). Hoje, felizmente, o som dos rifles, os ricochetes das balas e o tropel das cavalgaduras me fizeram boa companhia.






Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor 

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Imaginação avoa

 

IMAGINAÇÃO AVOA

 

carneiro balão trem

castelo dinossauro bola

pião pirâmide urso

todos macios, todos fofos

alvíssimos a flutuar pra lá

pra cá, para o infinito e além

 

entro correndo em casa

imaginação avoa como o quê

lá fora vagam nas horas

a manhã o sol a aragem

as nuvenzinhas amigas




Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: Ilhéus/BA (acervo do autor) 

domingo, 7 de fevereiro de 2021

TEMA PARA FUTURA CRÔNICA

O carnaval vem aí. Oficialmente começa na próxima sexta. Dizem que esse ano não haverá, por conta do corona. Mas como o feriado está mantido no calendário... Quem viver, verá. Se teve maluco festejando o réveillon, é provável que algum Simão Bacamarte saia por aí purpurinado, lançando confetes e serpentinas, exibindo para Momo as coxas brancas e os muques saudosos de academia. Repito: quem viver, verá. Tema para futura crônica (?)

Enquanto isso, o noticiário segue cinzento. Cinzento como este domingo que amanheceu chuvoso e frio, com raios e trovões. Noutros tempos, era bom domingo assim: eu me enrolava no cobertor e ficava o dia todo vendo os programas do Sílvio Santos. Hoje, me contento com uma ou outra série da Netflix. Que por sinal estreou na quinta A Cidade Invisível, que me conquistou o interesse. Tema para futura crônica (?) 

Seguindo a trilha do noticiário cinzento, tivemos eleição na Câmara. Sai a bosta, entra a merda, como diria Juju Jubarte, uma colega de classe. Desbocada como ela só, Juju dizia a palavra exata, nas horas inexatas. Por isso perdia preciosos pontos no quesito disciplina. Hoje, Juju Jubarte seria considerada lacradora e empoderada; naquele tempo, era desbocada mesmo. Tema para futura crônica (?)

Revirando os jornais: o desemprego segue em alta; o preço dos gibis está nas alturas; o combustível vai aumentar; as aulas presenciais voltam e não voltam; Fernanda Montenegro e Lima Duarte se vacinaram sem medo de virar jacaré; no planalto, prorrogarão o auxílio emergencial; Zé Gotinha faz trinta e cinco anos justamente quando a vacinação anda tão desacreditada. Temas para futuras crônicas (?)

Difícil se inspirar. E sem inspiração, não dá para escrever um poema. Diz Oswald de Andrade: mas não há poesia/ num hotel/ mesmo sendo/Splanada/ ou Grand-Hotel. O mundo virou um grande hotel desanimador, de paredes insípidas e broxantes. Para aliviar as tristezas e colorir o domingo que antecede a folia momesca, só mergulhando na poesia modernista. Tema para futura crônica (?)

A chuva cai lá fora (ainda bem, se caísse aqui dentro eu teria que gastar para tapar as goteiras) e vamos com Oswald para fechar esta crônica sem pé e sem cabeça: Há poesia/ na dor/ na flor/ no beija-flor/no elevador. 

P.S: prezados leitores, prometo que a próxima crônica virá mais elaborada. Ao menos, terá pé e cabeça.  




Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: Gramado/RS (acervo do autor) 

domingo, 31 de janeiro de 2021

Campo de batalha

 

Um burro pasta ao lado do fórum. Resignado, suporta o sol de quase 13 horas. Uma égua aproxima-se claudicante: tem a pata dianteira ferida. Indiferente, o burro pasta. Da janela, vejo-os enquanto espero o bebedouro encher minha garrafa. O burro para de pastar, ergue lentamente o pescoço. Parece olhar para a janela onde estou. Ajeito a máscara: como se o burro fosse me censurar por trazê-la no queixo. 

O ano vai terminando. Lento e claudicante, como a égua. Faltam dois dias para o recesso. O burro torna a pastar, alheio aos derradeiros dias do calendário, aos prazos que serão suspensos, aos plantonistas que se organizam em escalas para continuar fazendo justiça. A égua olha para os lados, parece procurar algo. Sombra, talvez. É o que penso, sentindo o suor escorrer pelas costas. Mas não há sombra. Aliás, não há nada no terreno além da cerca e dos mamoneiros.

Em criança eu colhia mamonas para brincar de guerrinha. Naquele tempo, imaginava o front como lugar de aventuras, de heroísmo... travava batalhas sem-fim nas tardes de janeiro até anunciarem o ângelus na capela. Trepado na goiabeira (minha fortaleza impenetrável) lançava granadas de mamona em inimigos invisíveis que se escondiam em trincheiras ou saltavam de helicópteros. Às vezes, eu saía em campo aberto na Monark (meu tanque) para alvejar acampamentos adversários. Munição nunca faltava: colhia depois das aulas nos terrenos baldios.

Sob o sol de quase 13 horas, o burro pasta. Ignora que anseio o fim do ano e que, perdido em recordações, não vi a garrafa encher, a água transbordar e molhar todo o chão do corredor.

Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: Visconde do Rio Branco/MG (acervo do autor)

 

 


quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Travessuras

 

Retorno feliz de Tatipirun.

Gancho e seus piratas, na taberna,

embriagados de ira e rum

fazem tremenda baderna.

 

Numa região de mata fechada

saltitava serelepe na estrada, juro que vi,

enquanto cantava forte a passarada

de pito e carapuça, juro, era um saci.

 

Tic tac tic tac vai, vai, o coelho

veloz como o cavalo de Atreyu.

Se não fosse este machucado no joelho

eu disputaria com ele quem chegava primeiro.

 

Lá pras bandas do Jacaré

vi o travesso Fernando.

Mas será possível, meu São José,

se a pouco ele estava no rio nadando!?

 

O fogaréu lambe o canavial.

Tanta fumaça me entope o nariz.

Na sala assistem ao Jornal Nacional

no quarto, desenhos com lápis e giz.

  

Falam-me coisas que não entendo

prefiro seguir, pé no chão e peito aberto.

Na cama, gozo o tempo escrevendo

ouvindo no toca-disco canções do Roberto.



Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: CCBM, Juiz de Fora, outubro de 2019 (acervo do autor)  

domingo, 24 de janeiro de 2021

Vaidades


Te vi nos corredores do Fórum

lembrei da máxima de Salomão:

vaidade das vaidades

 

quando aprenderás a lição?

 

Era dia de pouco movimento

segunda de ressaca, apenas um leilão.

Se tudo são vaidades

 

quando abrirás teu coração?




Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor 


domingo, 17 de janeiro de 2021

A PRAÇA É DO POVO?


Tornaram a fechar a praça. À noite, enquanto eu compunha um poema, vi pela janela as cercas metálicas instaladas no entorno da Praça 28. Pela manhã, as boas e as más línguas comentavam a novidade no Facebook (essa acrópole do mundo contemporâneo). Provavelmente a nova administração também a divulgou em suas redes, sobretudo nos stories (essa mania nacional). Há tempos somos governados, do Planalto aos Paços Municipais, através de posts e twittadas.

Vieram-me à lembrança os versos de Castro Alves: A praça é do povo/Como o céu é do condor. Em tempos de peste, contudo, a praça deixa de ser do povo conforme os interesses do vírus e de nossos doutos gestores. Verdade verdadeira: nada é do povo porque, se se olhar direitinho, o povo sequer existe. Povo é abstração. Ficção político-jurídica. Povo é palavra qualquer a rolar na boca de mal intencionados, políticos e hipócritas de palanque. Tal palavra ganha corpo somente para satisfazer interesses obscuros de grupos que se revezam no poder. Por isso, nos discursos dessa gente o povo é sempre os outros; ela nunca se inclui nesse rol porque precisa estar acima do povo para, como César, ver e conquistar. Foi assim também na França de Napoleão, no Reich de Hitler, na Cuba de Fidel, nas republiquetas de banana das Américas.

Mas, voltemos à Praça 28. Voltemos em pensamento, claro. Porque a praça, esse “antro onde a liberdade/cria águias em seu calor”, está cercada e protegida como a Mona Lisa no Louvre. Distante e sedutora, como o paraíso do Sr. Roarke do seriado A Ilha da Fantasia. Inacessível, como a ambrosia do Olimpo. A praça, de novo, não é mais do povo. “Desgraçada a populaça/Só tem a rua seu”. Donde estiver, me diga, Sr. Castro Alves: quando a praça foi do povo?




Texto: Raphael Cerqueira Silva 

foto: Praça 28 de Setembro, Visconde do Rio Branco (acervo do autor) 

quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

Ondas

 ondas iam, ondas vinham...


na manhã quente nuvens carregadas

anunciaram chuva no horizonte


ondas iam, ondas vinham...


traziam conchas e, insensíveis,

desmancharam o castelo na areia


ondas iam, ondas vinham...


fortes, molhavam meus tênis

às vezes, certas gotinhas travessas 

lambiam os pelos de minhas pernas,

excitando-me recordações não tão antigas


ondas iam, ondas vinham...


corria na areia, pisoteando conchas,

vez ou outra desviava de garrafas e latas

abandonadas no último luau


ondas iam, ondas vinham...


certamente viram na noite anterior

jovens afoitos para curtir a vida

entregues aos enlevos do amor 


ondas iam, ondas vinham...


a memória procurou imagens e sabores

daquela alvorada quando, à beira-mar,

esperamos o sol, sem pressa, 

banhados em suor


ondas iam, ondas vinham...


atletas iniciantes, admiravamos o mar... 

pensamentos à deriva eram levados 

pelo marulho constante das ondas 


indo, vindo, indo, vindo, indo...




Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: Morro de São Paulo/BA (acervo do autor) 







 


domingo, 10 de janeiro de 2021

OUTROS HORIZONTES

 

 

À janela, o poeta sonha

outros horizontes

escreve sobre o tempo

numa folha avulsa.

O tempo, à janela,

aconselha:

vá, menino, a vida é agora.




texto: Raphael Cerqueira Silva 

foto: Forte de São Diogo, Salvador, BA (acervo do autor) 

quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

MEMÓRIAS E UM TANTÃO DE SAUDADE

estojo de madeira merendeira

espadinha de plástico para a vitória alcançar

esqueceram de mim na sessão da tarde

pipoca guaraná muito doce pra viver

 

no resta um ficaram três dessa vez

Pererê Luluzinha Cebolinha esperam

no caderno encapado tem para casa a fazer

tabuada conta reconta no ábaco colorido

 

na vitrola cantam quadrinhas e um refrão

roda pião empina papagaio pega vareta

demora julho demoram férias frio diversão

invejo o Pimentinha passeando em Nova York

 

fim de semana fitas para alugar

após a missa pique pega na praça da estação

Abacatinho pastel de queijo

quermesse fogueira correio do amor

 

numa folha qualquer não desenhei com Faber-Castell

à mesa cotocos de lápis Labra giz de cera aquarela

broa canudinho bolo de coco ralado

no viveiro periquitos multicores desaprendem a voar

 

mirante trilhos dormentes o trem a tardar

mais um álbum preenchido bola peteca vou ganhar

quebra-cabeças a irmã misturou

no tapete Comandos a batalhar

 

tique-taque tique-taque

heróis japoneses chegam ao canal 9

hoje à noite será o Cid Moreira a anunciar

quem matou Odete Roitman?

 

caldo Maggi na cozinha a esfriar

a coca perdeu o gás o disco arranhou

o tubo de Kolynos sem tampa na pia

na rua ronca o velho motor Chevrolet

 

da serra desceu um friozinho

veio vindo vindo passou pela praça

cruzou o Xopotó parou na varanda da casa

que tinha na fronte inscrito “Lar Santa Ifigênia”

 

faminto feito o lobo bateu à porta o tempo

a infância enroscou amarrou no saco preto

levou-a para o longe longe longínquo...

ficaram memórias e um tantão de saudade.

 



 Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: São Geraldo - MG (acervo do autor) 

domingo, 3 de janeiro de 2021

Meus pensamentos


Meus pensamentos perderam

a ingenuidade.

Andejam em trilhas hedônicas

despindo-se em sarcasmos.

Meus pensamentos estão longe

de ser exemplares:

zombam das criaturas que apoquentam meus dias.

Nessas horas sou vil, sou impiedoso.

Quando envolto em tais pensamentos,

às vezes, me desconheço.

Meus pensamentos não cabem

em um poema:

impróprios à palavra escrita,

aos olhos ordinários.

Meus pensamentos...

ah, melhor deixá-los no éter

na simples condição de pensamentos.




Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: desenho feito pelo autor 

 

Outro encontro

  Novamente sentado nesta cadeira desconfortável. Ah, se essa gente soubesse como odeio agências bancárias, filas e cadeiras desconfortáve...