domingo, 31 de julho de 2022

Inverno em Beagá

  

            O sol não decide se vai ou se fica, a brisa não me deixa esquecer: ainda estamos no inverno. E que inverno! Há anos, não sentia tanto frio. A manhã se arrasta, abro o Estado de Minas: Vera Fisher é furtada na Feira Hippie. A que ponto a criminalidade chegou: não respeita sequer a deusa Vera. Por essas e outras, quero distância de Beagá (e das cidades grandes, em geral). Percorro os quatro curtos parágrafos da matéria, recordo a primeira vez que fui à capital... faz tempo, muito tempo, eu ainda não tinha fios grisalhos... Como eu dizia, fui à capital, convocado a participar de um curso de capacitação. Era também inverno, não tão rigoroso quanto o deste ano, mas em algumas vezes, sobretudo à noite, o vento uivou feito um cão danado.

            Domingo cinzento. Desembarquei na rodoviária, com o propósito de, nos dias seguintes, ir apenas do hotel às aulas e das aulas pro hotel. Peguei o táxi; faz favor, me leva até o Othon Palace, um amigo está me esperando lá. Antes de viajar, me recomendaram: fala que alguém te espera no lugar, assim, o motorista não vai rodar por ruas e avenidas a fim de encarecer a corrida... Pouco espiei pela janela, para não dar pinta que era a primeira vez que circulava pela capital. Nada de ficar olhando feito jeca pros prédios, me aconselharam.

            O taxista perguntou de onde eu vinha; de Juiz de Fora, menti. Pensei: se digo que sou de um lugar que nem está no mapa, provavelmente achará que sou um bocoió e vai querer me engambelar. Sorriu pelo retrovisor: ah, conheço, conheço muito. Senti um frio na barriga: ai, se esse sujeito começar a falar com intimidade em Juiz de Fora perceberá que, exceto o Parque Halfeld, não conheço mais nada lá... Para minha sorte, só comentou: é a cidade do Itamar, né, grande presidente; tivesse mais tempo pra governar, teria feito grandes coisas, não era como esses políticos de hoje. Assenti, aliviado. Ele mudou o rumo da prosa: a chuvinha que caiu ontem veio pra trazer mais frio.

            Hospedei-me perto do local onde Vera ficou sem sua bolsa. Preenchi a ficha, do hotel não saí. É ruim que vou perambular por essas ruas desertas, ruminei, enquanto desfazia a mala. Passei o resto da tarde a janelar, roendo Fandangos.

            A segunda-feira chegou com um alerta (na verdade, a confirmação do que eu previra): a professora, lá pelas tantas, aconselhou-nos: evitem zanzar pelo centro tá, pessoal; ano passado, uma turma do interior veio fazer esse curso e teve uns contratempos nas imediações do parque, e uma moça levou um susto aqui mesmo, na Afonso Pena.

            Como diz o velho ditado, para o bom entendedor um pingo é letra. E, como canta o Toquinho, com dois pingos tenho um guarda-chuva. Resumindo: captei a mensagem da professora e, já decidido a não dar bobeira, todos os dias eu fazia o trajeto de ida e volta com cara de mau para intimidar qualquer criatura, passava mais rápido que o Ligeirinho pelas mesmas calçadas, não me dava sequer o direito de olhar as vitrines.

            Uma vez protegido no aconchego e quietude do quarto, me debruçava na janela, olhava a vastidão pontilhada de neon. À medida que a noite avançava, carros e pessoas rareavam, as pernas pediam descanso. Ligava a televisão, pulava de canal em canal evitando os noticiários que certamente falariam em balas perdidas, assaltos, mortes, tragédias... nunca torci tanto para a semana voar, nem nos tempos de escola quando rogava aos céus pelas férias.

 Todavia, o tempo, tinhoso, custou a passar. Certo dia, colegas de curso me convidaram para um rolê. Vou não, agradecido, tô cansado. Menti, estava cansado nada; mas arriscar pra quê, sussurraram-me, em uníssono, a Senhora Cautela e o Senhor Receio.

Finalmente, o sábado chegou. Faz favor, pra rodoviária, o mais rápido possível, tá quase na hora do meu ônibus, disse ao taxista. Colou, paguei praticamente o mesmo valor da ida. Desci, ignorei um esquisito que veio oferecer não sei o quê, tomei chá de cadeira até às dezoito horas.

Embarquei, ileso. Ao contrário de Vera, que voltará para casa sem a carteira e os documentos, regressei com meus pertences, intactos, na mochila.

Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor

domingo, 24 de julho de 2022

Éramos tão jovens


 

Éramos tão jovens

ali, naquela sala de aula

ouvindo no k-7

a trilha de Top Model.

 

Ah, éramos tão jovens

sonhando, se descobrindo

entre carteiras, desejos

cadernos, fotos de artistas.

 

Éramos tão jovens:

todo o mundo mundo

vasto mundo a percorrer

com nossos All Stars.

 

Ah, éramos tão jovens

nossos dilemas diluídos

entre notas azuis, vermelhas

bilhetinhos trocados em surdina.

 

Éramos tão jovens

cantando hits de amor

olhando-nos furtivos entre fórmulas

conceitos, decorebas de geografia.

 

Ah, éramos tão jovens

na fila da cantina, no recreio

na quadra ensolarada: shorts

camisetas, suor no piso desgastado.

 

Éramos tão jovens

jeans, mochilas, uniformes

Calois, gírias da tevê

apelidos, ilusões púberes.

 

Ah, éramos tão jovens…   

 


 

Poema: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor 

domingo, 17 de julho de 2022

Dia de audiência


- Oi. 

- Boa tarde. 

- Você trabalha aqui?

- Sim. 

 - É que eu fui intimado para uma audiência, não sei qual a sala... 

- Audiência cível ou criminal?

- Hum... estou sendo processado por uma dívida. 

- É cível, então. A audiência será naquela sala ali, a 508. O senhor pode aguardar nestas cadeiras. As primeiras audiências atrasaram um pouco, então, quando for a sua vez, a conciliadora fará o pregão. 

- O quê?

- A moça chama seu nome. 

- Ah... e quem me processa, não vem? 

- As audiências cíveis são realizadas presencialmente, ou por videoconferência. Se a parte e o advogado optaram por acessar o link, participarão de casa ou do escritório. 

- Quer dizer que eu podia ter ficado em casa? 

- Sim. Na intimação enviada ao senhor anexamos o link para acesso à sala de audiências. 

- Mas já que estou aqui, acho que vou ficar... 

- Como o senhor preferir. Há partes que vêm ao fórum porque têm dificuldade para acessar o ambiente virtual, ou porque a conexão com a internet não é boa...

- Meu sinal de internet é muito bom. Quer dizer, o sinal do meu vizinho, porque eu moro numa casa de parede-meia e uso o sinal dele, sabe como é... 

- O senhor aguarda aí mesmo, daqui a pouco apregoam seu nome. 



Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor 

domingo, 10 de julho de 2022

FLANANDO

    Tiro a tarde para bater perna. Solzinho outonal bulindo no moletom, vento desalinhando os cabelos carentes de tesoura, eu vou. Por que não? Há tempos não me dou o direito de flanar pelas ruas. Leve como o colibri, sonso como o menino que matou aula, eu vou.
    Uma dona, dessas que se maquiam e pintam o cabelo e mesmo assim permanecem com cara de coruja, salta à minha frente, feito o boneco do Pula Pirata. Donde saiu, não sei, também não paro para conjecturar. Vem oferecer empréstimo consignado, me chama de senhor. Tô com pressa, rosno. Além de cara de coruja, inconveniente: ousa estragar meu dia com conversa fiada e ainda me chama de senhor... ah, vá catar coquinho.
    O pacote médio, bota bastante sal e queijinho, faz favor. O pipoqueiro capricha no sal; quanto ao queijo, não dá nem pra tapar o buraco do dente, como dizia vovó. Em frente ao teatro, o hippie tenta convencer o rapaz que, se der mais desconto no cordão, vou ficar no total preju, bicho. Sigo pelo calçadão, comendo as pipocas, olhando vitrines. Na porta da Americanas um bêbado berra tenho fome, tenho fome. Fome de cana, alguém diz ao passar apressado por mim.
    Entro na galeria; não vou comprar nada, mas olhar (ainda) não paga imposto. Uma moça, idêntica à secretária dos Caça-Fantasmas, se aproxima, me oferece amostras de perfume. Ai, por que fui aceitar? Ela desanda a falar das fragrâncias, que são artesanais, muita gente tá comprando pro dia dos namorados. Sou solteiro, explico, na tentativa de escapar do lero-lero. Ah, mas quem usa os meus perfumes não fica sozinho, além do quê um homem perfumado fica mais charmoso... antes que minha carência se agarre a esse adverbiozinho matreiro, sarto de banda: qualquer coisa eu volto aqui. A escada rolante me leva, não entendo minha frase à la Patropi; a Janine da galeria entendeu, a julgar pela cara que fez.
    Os tênis na vitrine me seduzem. Bom dia, precisando é só chamar, diz o vendedor. Agradeço. Eu tô aqui, tá; se quiser entrar, temos outros modelos. Que está ali, eu sei, impossível não notá-lo plantado ao meu lado. Temos promoção de outras marcas aqui dentro da loja. OK, e lá vou eu... nem olhar sossegado uma vitrine a gente pode, credo.
    No cinema, Pete “Maverick” Mitchell e um enorme caça em contraste com o amarelo poente ao fundo. Belo cartaz, belo e eficiente: em Mach 10, as lembranças da meninice voam diante das minhas lentes... ah nas tardes ociosas, eu assistia Top Gun largado no sofá, sonhando ter os óculos, o blusão e a moto do Tom Cruise para conquistar uma gatinha como aquela do filme e trocar beijos de tirar o fôlego ao som de Take My Breath Away... No cinema ninguém vai me atazanar.
    À minha frente, um casal não se decide entre o filme dublado ou o legendado. O atendente olha a fila eu, o relógio. A mulher, enfim, bate o martelo: dublado, pô. Inicia-se outro dilema: as poltronas. O sujeito percorre com o indicador a tela do monitor, parece jogar batalha naval. Sem opção, espero. L9 e L10, a mulher diz ao atendente. Mas, amorzinho, a fila M é melhor... L9 e L10, a mulher sentencia. Próximo. Custou hein, digo ao atendente. Seu sorriso me diz muito sobre sua rotina.
    Na fila da pipoca, o mesmo casal: é hoje, penso. Novo impasse: combo de pipoca + refri + chocolate ou os produtos separados. Os minutos avançam, antevejo a sessão iniciada, a sala escura, o filme rolando, tropeço nalgum degrau, esparramo as pipocas no chão, atrapalho os espectadores porque um casal irresoluto não sabe nem o que vai comer... A atendente também não ajuda: demora séculos para entregar o combo, emitir a nota fiscal, dar o troco. Próximo.
    Minha vez, finalmente. Pipoca de 12, 14 ou 20, senhor? A menor, faz favor. A de 14 é praticamente do mesmo tamanho, sai mais em conta, senhor. A de 12, mesmo. A lerda digita qualquer coisa. Refrigerante, senhor? Não. Suco? Não, nem água. Vai comer a pipoca sem beber nada? Miro bem nos seus olhos: vou, sim! Então, por que o senhor não compra as balinhas que tão na promoção... não entendo a relação das balinhas com o fato de eu não comprar algo para beber. Não, não. Olho para os lados, saguão e corredores vazios: ai, a sessão começou. O senhor não prefere o combo com... Minha filha, o senhor aqui tem um encontro com o Senhor Cruise; fica com as pipocas e as balinhas. Ela deixa um “mas” aparvalhado cair no balcão, não quero ouvir mais nada. Voo pelo corredor para não perder o início do filme.



Texto: Raphael Cerqueira Silva
Foto: acervo do autor 

sábado, 2 de julho de 2022

Um canto na tarde


O vento bole as árvores. Apesar do calor intenso, estão verdinhas, as folhas; sobretudo, as folhas daquela árvore que, à esquina, vê o dia e as ilusões do progresso passarem... Mais cedo, li n’O Estado de Minas: a temperatura no sudeste vai subir, chegará aos 40°. Aqui por estas bandas, a julgar pelo vento quente, se ainda não batemos na casa dos quarenta, estamos quase lá... colegas de trabalho se assanham, programam mais uma ida à Guarapari; olhando as árvores, penso nos livros que comprei e ainda não tive tempo de ler. 

Burocratas passam – interminável ir e vir, devem achar que zanzando assim, feito baratas tontas, estão a exercer o constitucional direito de locomoção – levam documentos, autos de processos, tantas regras. “Tento não pensar em nós” enquanto olho as motos cortando a Theophile Dubreil... Estranho, hoje são poucas: normalmente nesse horário é tanto carro e tanta moto que chega a incomodar. 

Alguém cantarola; apesar de desafinado, o canto me remete aos tempos da Professor Ormindo: ensaiamos com a tia Regina para cantar na semana da criança... ô tempinho bom: na semana da criança, a merenda era especial: arroz de forno, macarrão, frutas, às vezes até cachorro quente aparecia... e tinha teatrinho, muito desenho pra colorir... ó, desafinado cantador que varaste a tarde, teu canto abriu a torneirinha da nostalgia, agora como conter o jorro?  Diacho, por que alguém canta, no meio dessa tarde burocrática? O vento parece dizer: desconheço o motivo; eu também, mas isso agora pouco importa: o pensamento galopa apressado para outros campos. 

Vou ao escaninho, retiro meia dúzia de autos para arquivar. No balcão, um homem encurvado desliza o dedo grosso por cada linha do papel diz, em tom queixoso: descabida e absurda. Não sei se se refere à sentença ou à canção. Fecha os autos com fúria, lança ao estagiário um “obrigado” que mais parece um brado de guerra; seus sapatos rangem pelo corredor, ouço o estalar da porta do elevador. O canto persiste, mais alto, mais desafinado; vem do estacionamento, acho. Os dedos do homem, indo e vindo pelas linhas da sentença, me fizeram lembrar quando eu brincava de inventar histórias na máquina de escrever do pai... ao fim de cada linha, puxava a alavanca da esquerda, a folha rolava um pouco pra cima, eu continuava com minhas invencionices... a tarde no sindicato passava assim, ao som dos tac tac tac da Olivetti, do trim trim trim do telefone, dos rangidos das charretes que cortavam a rua. 

A viatura policial circula na avenida. Um burrico, como se senhor do tempo, atravessa calmamente à sua frente. O canto cessou. Alguém ri um riso feio e quase idiota; não vejo seu dono: depois da pandemia o balcão foi afastado mais para perto da porta, da minha mesa não vejo mais quem chega ou quem vai; para vê-los, só indo ao escaninho dos processos para arquivar. Por um lado, é bom: era um tal de ter que responder a cumprimentos falsos e perguntas de gente inconveniente... Um e-mail chegou: é a Estante Virtual me lembrando de qualificar o livreiro. Esta semana não tive tempo de ler nada – certamente na próxima semana será igual: a burocracia surrupia-me o tempo; vivo, não para mim, mas para cumprir ordens. Oh liberdade, liberdade, quando abrirás tuas asas sobre mim?! 

A colega da frente vira-se, rápida e horrendamente, como a menina do Exorcista. Dou conta, assim, que clamei alto demais. A pandemia nos deixou todos doidos, ela comenta. Envergonhado, olho pela janela... tudo isso é triste, chega a ser insano mesmo. As árvores da Theophile Dubreil agora estão paradinhas, o vento se foi... ó, Éolo, será que ruminei minhas inquietudes tão alto? Os burocratas, ao contrário, continuam indo e vindo, carregando provimentos, jurisprudências, portarias, despachos nesse eterno, démodé e medíocre bailado. O canto, ao menos, retornou. 




Texto: Raphael Cerqueira Silva
Foto: acervo do autor 

sexta-feira, 24 de junho de 2022

A solidão de Drummond


A solidão de Drummond

à beira mar, 

à beira do caos 


sem rimas e sonhos 


é a solidão da vida 

arrastada na lama,

incinerada à sombra da noite


no silêncio dos anônimos. 




Texto: Raphael Cerqueira Silva

Foto: acervo do autor 

domingo, 19 de junho de 2022

Check in e check out


Desci para o check out. Argentinos emburrados falavam e gesticulavam; debruçado no balcão, um deles debatia com o recepcionista. Olhei o relógio na parede: tempo de sobra; sentei, puxei a Veja velha largada ao lado do jarro. Os hermanos falavam em uníssono; eu pouco entendia; aliás, a julgar pelo olhar embasbacado do atendente, acho que ele tampouco. O infeliz não conseguia dizer um mísero verbo noutro idioma, apontava a tela do computador tentando se fazer entender por gestos... diacho de hotel mais fuleiro, pensei, nem pra contratar um funcionário que enrole no portunhol. Lembrei uma amiga que, noutro dia, dissera: a cada dia fica mais difícil encontrar mão de obra capacitada neste país... 

       Virei as páginas amarelas: detesto ler entrevistas. Súbito, o sujeito com pinta de líder acenou, o grupo fez silêncio. Do restaurante, vinham os versos: Daniel is travelling tonight on a plane... Pelo que entendi, o grupo pagara as reservas a uma agência, que não repassou os valores para o hotel. Os argentinos, ainda emburrados, recolheram as malas e mochilas, saíram enfileirados como escoteiros; pararam ao lado da banca de jornal - mais uma que não sobreviveu aos tempos pandêmicos, a julgar pelo #FORABOLSONARO pichado de vermelho em sua lateral e os anúncios de cartomantes, manicures, motoboys, colados de cima a baixo. 

O rapaz sentado à minha frente levantou, aproximou-se do balcão. Cabelo à escovinha, mochila pendurada no ombro esquerdo, camiseta com o rosto de Lennon, bermuda e havaianas. Coçou o rosto mal barbeado, esperou atendimento. O funcionário desligou o telefone: pois não... Nunca entendi direito esta expressão; ao me dirigir aos jurisdicionados lá na secretaria, quase sempre a uso, e quase sempre me sinto meio ridículo... O atendente gritou: trezentos e cinquenta. Será que o rapaz é surdo, pensei; interrompi a resenha de A noite da espera...  No, no entiendo, ele disse num tom tímido, como se se desculpasse. Com a mão no mouse, o atendente gritou: três-cinco-zero. No, no entiendo. 

         Outro hermano, perguntei ao jarro, embora o sotaque e o rapaz fossem bem diferentes dos argentinos que, ainda na calçada, falavam e gesticulavam. Esbelto, vinte e pouquinhos anos, seu rosto me lembrou o ator de uma série que eu assistira na Netflix, Alejandro sei-lá-das-quantas. Os argentinos, ao contrário, eram homens de meia idade, barrigudos, a maioria com bonés horrendos, mais pareciam apostadores de rinha que turistas; um deles me fez lembrar o Maradona em seus piores momentos... O atendente, num rompante de sagacidade, sacou o celular do bolso, digitou os algarismos; o rapaz encarou a tela, deve ter calculado mentalmente o câmbio, fez um joinha... Deus salve o Facebook, que globalizou o sinal de joinha. Voltei à resenha. 

       Duas horas, o atendente gritou, mostrando os dedos. No, no entiendo. Duas horas, agora é meio dia e meia, check in só duas horas... Uai, se o cara não entendeu “duas horas”, como entenderá o resto da frase, indaguei à foto do Hatoum no canto da página. Do restaurante, vinham os acordes finais de Il Mondo; dois rapazes, que há tempos trocavam afagos, se beijaram com a volúpia que só a juventude – e o fato de se estar noutras terras - permite. 

       O gringo voltou à poltrona, larguei a revista, fui ao balcão. Pois não. Fecha pra mim. O atendente clicou no mouse: teve consumo, senhor. Sim, uma água. Diária e água, 358. No crédito, estendi o cartão. Ok, senhor. Ainda bem que não gritou. No quadro pintado a óleo, um gato abstrato demais pro meu gosto mirava o Corcovado. O comprovante custou a sair. Com o pé, o rapaz acompanhava a música de Eros Ramazzotti. Novinho e de bom gosto, pensei, recolhendo minha mala. 

  Caminhei para o ponto de táxi. O vento outonal brincava nas árvores. Não vi mais os argentinos. Cose Della Vita, fiz coro à música que vinha do restaurante. 



Texto: Raphael Cerqueira Silva

Foto: acervo do autor 

quinta-feira, 9 de junho de 2022

DIA DE FESTA


      "Hoje vai ser uma festa/bolo e guaraná, muito doce pra você..” Festejar o quê, indaga o leitor que, eu sei, não é dado a festas e acha que “tudo vai mal/ tudo, tudo, tudo, tudo” e não há motivos para festejos... Apesar de tudo, pessimista leitor, tenho um motivo para comemorar: meu menino faz cinco aninhos. Ah, a leitora não sabia que tenho um filho? Sim, e se chama Processinho; quer dizer, oficialmente seu nome é 00047758.2017.7.36.0912... Não se horrorize, suscetível leitora, não fomos eu e a mãe dele que o batizamos assim: foi o Sistema, esse todo poderoso Ser que nos governa a todos, submetendo-nos à sua força tirânica e nos subtraindo, dia a dia, a humanidade... Mas isso é papo pra outro momento. Hoje é dia de festa!

Meu menino é peralta, nunca fica quieto no seu cantinho: salta de mesa em mesa, passeia do gabinete pra secretaria, da secretaria – imagine só – já foi até à capital conhecer os luxuosos gabinetes da Cidade Administrativa... Certa vez, isso antes de se enveredar pelas alterosas, Processinho visitou a ilustre sala da Defensoria Pública... ih, isso causou um mal estar tremendo: a mãe dele, advogada cricri lá de Beagá, não gostou, me cobrou explicações; com as mãos na cintura, os olhos estalando  de ira: que que meu filho foi fazer no gabinete da defensora, hein? Fui colocado contra a parede; gaguejei, como de costume, tentei explicar, me embananei, não convenci: a boa de oratória e argumentação da família sempre foi ela... Aí, apelei: mas quando o Processinho ficou parado na vara de precatórias aí de Beagá, certamente no escaninho de algum gostosão bombadinho, você não deu um pio, né... Brigamos, trocamos ofensas pelo zap-zap. Tem sido assim desde que nosso bebê saiu da sala da distribuição, essa chocadeira de burocracias: ele não anda, eu reclamava; ela, vai lá e dá um jeitinho; eu, mas como se você sabe que meu santo não bate com o daquela gente; ela, se vira, dá seus pulos... Não pulei, ela também pouco fez, chegou “a hora de apagar a velinha/vamos cantar aquela musiquinha...” 

Desabafei com um amigo sobre a saga que é criar um filho nestes tempos burocráticos. Meu amigo é advogado militante há mais de vinte anos, sabe bem como é a dolce e bella vita forense. Estufou o peito, ajeitou a gravata, citou Rui Barbosa, algo sobre justiça tardia é arremedo de justiça... Meu amigo, um erudito, lê os filósofos e os clássicos da literatura e do direito, conhece citações até em latim. Na época da faculdade, todos o procurávamos para fazer trabalhos e artigos juntos: afinal, ele era o único aluno em todo o campus que lia (e compreendia) Pontes de Miranda, Caio Mário, Ihering, Beccaria, Canotilho... pena que puxaram seu tapete naquele concurso de 199*: teria sido um brilhante magistrado, melhor que muitos que estão por aí usando a toga para esconder hipocrisias e podridão, ou arrotando sapiências só porque visitaram a Índia, o Nepal, o Butão... 

     Na porta da Universal, meu amigo se empolgou; além da Águia de Haia, citou Cícero e Marco Aurélio, Platão e Aquino, Nietzsche e Kierkegaard. O pastor se aproximou, perguntou se precisávamos de alguma ajuda. Como eu, deve ter entendido lhufas daquela pregação que mais parecia anunciar o juízo final. Meu amigo encarou o pastor, me pegou pelo braço, atravessamos a rua. Na porta de um sobrado que já conheceu dias melhores, discorreu sobre a travessia de Guimarães Rosa, recordou as lições do Paulo Nader, voltou ao Rui que, segundo entendi, disse que chega um momento em que o homem desanima da justiça de tanto ver crescer a injustiça. 

   À janela, uma dona aplaudiu; meu amigo se distraiu agradecendo-a, aproveitei e segui meu caminho; bem menos erudito que ele, popular com muito orgulho como já o disse noutro texto, saí cantarolando o Parabéns da Xuxa, levando na sacola a velinha azul e os brigadeiros e moranguinhos para enfeitar a mesa do níver do meu filhão. Olhei o relógio da São João Batista: o bolo pegarei depois do expediente, pensei, e subi a ladeira. 





Texto: Raphael Cerqueira Silva

Foto: acervo do autor 

domingo, 5 de junho de 2022

REPÓRTER MIRIM


— Sol ou chuva? 

— Chuva e frio. 

— Não pode, padrinho. Só sol ou só chuva. 

— Só chuva.

— Mulher bonita? 

— Sua mãe.

— Ih, o pai não vai gostar de ler isso... 

— Ele vai ler? 

— Uai, padrinho, é jornal que eu tô fazendo. Todo mundo vai ler. 

— Todo mundo, quem? 

— A tia da escola, a mãe, o pai, o vô. E todo mundo que parar pra ler as entrevistas coladas no mural da escola.  

— Então, apaga. Escreve Yoná Magalhães. 

— Quem? 

— Uma atriz já falecida.

— Ô, padrinho, tem que ser gente viva... Posso botar o nome da madrinha?

— Não. 

— Por quê?

— Tô brigado com ela. 

— Por quê? 

— Essa pergunta está na entrevista? 

— Não. 

— Avante!

— Como?

— Próxima pergunta, menino.

— O senhor ainda não disse o nome. 

— Que nome? 

— Da mulher bonita. 

— Ah, bota aí Vera Fisher, Luíza Brunet, Maitê Proença... Qualquer nome serve. 

— Padrinho, a entrevista é séria. 

— Paola Oliveira, pronto. 

— Homem charmoso? 

— Uai, bonito não? 

— A tia disse pra falar charmoso, se não os entrevistados não vão responder. 

— Por quê? 

— Porque homem não acha homem bonito, né. 

— É... Escreve Cauã Reymond. 

— Desenho animado? 

— Papa-Léguas.

— Desenho velho não vale.

— Aquele que você fez na parede, então.

— Não fiz desenho animado, fiz arte. A tia mandou a gente imitar o Kobra. 

— E por que não fizeram arte na parede dela? 

— Porque ela mora longe. 

— Ah, e os “artistas” não podem andar? 

— Vou escrever o quê, hein? 

— Ah, bota Pica-Pau. 

— Cantor preferido? 

— O rei Roberto Carlos.

— Posso colocar essa resposta na outra pergunta? 

— Por quê? 

— Porque a outra pergunta é: se você fosse morar num reino encantado, seria o reino de quem?

— Esse rei que falei é rei da música, não de um reino...

— Ih, padrinho, não complica. É papo reto, sacou?

— Como?

— Super-herói preferido? 

— Superhomem. 

— Ô, padrinho, é Superman. Mania de velho falar errado.  Livro preferido? 

— Não sou muito de ler, não. 

— Fala qualquer um, menos a Bíblia. 

— Por quê? 

— Porque todos os entrevistados responderam esse. 

— Quem você já entrevistou? 

— Não digo. 

— Ora, por quê? 

— Porque um repórter guarda o segredo das fontes. 

— Quem te disse isso, menino? 

— A tia da escola. 

— Essa tia não tem nada melhor pra ensinar, não? 

— Por quê? 

— No meu tempo, a gente tinha tarefa de aritmética, fazia conta no ábaco, decorava as capitais, copiava texto no caderno brochurão...

— O velho de novo.

— Olha aqui, seu moleque...

— Calma, padrinho, é só o nome dum livro que lembrei agora. 

— Quem escreveu essa marmota? 

— Pedro Paulo Pereira do Prado Penteado. 

— Por isso não gosto de ler. 

— Artista? 

— Pintor, escultor, compositor?

— Qualquer um. 

— Da Vinci. 

— Vinte, não. É um nome só.  

— Leonardo da Vinci. 

— Ator preferido? 

— Vivo ou morto? 

— Vivo, padrinho, vivo. Se não ninguém da escola vai saber quem é. 

— Tony Ramos. 

— É estrangeiro? 

— Não.

— Quero estrangeiro. 

— Por quê? 

— Porque é chique escrever nome estrangeiro. 

— E você sabe escrever estrangeiro?  

— E-s-t-r-a-n... hum, é com g ou j? 

— Te peguei. Eu quis dizer escrever o nome do ator estrangeiro. 

— O padrinho também tem dúvida? 

— Arnold Schwarzenegger. 

— Não... Estrangeiro é com g ou j? 

— Próxima pergunta, vai. 

— Não sabe, não sabe.

— Isso é trabalho de Português, por acaso? 

— Já foi em Portugal? 

— Não, por quê? 

— Tem uma pergunta aqui que é: qual país já visitou? 

— Paraguai. 

— Foi fazer o quê lá? 

— A tia quer saber isso também? 

— O repórter vai além da pauta do editor.

— Sei... Essa entrevista não tem fim? 

— Tem, tá acabando. Foi fazer o quê, lá? 

— Lá onde, menino? 

— No Paraguai. 

— Fui comprar cigarro, aparelho de som, televisão e videocassete. 

— Video o quê? 

— Um aparelho que a gente usava pra ver filme. 

— Não tinha dessas coisas aqui na cidade? 

— Eu revendia no consórcio.

— Como assim? 

— Próxima pergunta. 

— Atriz preferida? 

— Julia Roberts. 

— Pode ser brasileira mesmo. 

— Ô, menino, decide. 

— Escritor? 

— Paulo Coelho. 

— O padrinho já leu ele? 

— Não, mas minha filha vive lendo. 

— Música preferida? 

— Tente outra vez. 

— É sério, padrinho. Música?  

— Falando sério. 

— Ô, mãe, o padrinho tá me trolando! 

— Vamo embora, filho. 

— Falta só uma pergunta, mãe.

— Anda, seu padrinho quer ver a novela.  

— Se um ET descesse no quintal e dissesse: faça-me um pedido, o que você pediria?

— Que levasse todos os meninos perguntadores pro espaço. 

— Ô, mãe, o padrinho tá copiando a resposta do vô! 




Texto: Raphael Cerqueira Silva
Foto: acervo do autor


domingo, 22 de maio de 2022

PRIMEIRO DIA DE AULA


Primeiro dia de aula. Como sempre, o ônibus atrasou; já me acostumei: ano passado foi todo assim. Numa noite, o trânsito congestionou a Beira Rio; noutra, o ônibus demorou a cortar as ruas estreitas do Centro; na época das chuvas fortes, os buracos no asfalto reabriram e foi uma dificuldade vencer os vinte quilômetros entre minha cidade e Ares Formosos... Às vezes, eu achava que chegaria no horário, mas o ônibus custava a conseguir vaga no estacionamento; resultado: descer lá longe e andar até a faculdade e encarar seus setenta e um degraus porque o elevador... ah, o elevador vive na promessa da reitoria. Nessas horas invejo a galera da Pedagogia: o curso é no térreo. E ainda dizem por aí que vida de estudante é fácil. Fácil é a vida de parlamentar em Brasília. 

Porta entreaberta. O professor, de pé, ereto no terno preto como um sabugo encasacado, lia o que julguei fosse o conteúdo programático ou a bibliografia. Caminhei até o fundão. Doralina, sempre gentil, deixou o caderno marcando lugar para mim. O Gianecchini sorria, sem camisa, na capa. Sentei, enxuguei o suor da testa; Doralina recolheu o caderno, sorriu; ao contrário do Gianecchini, um sorriso compreensivo: antes de se mudar para Ares Formosos, ela também passou pelos mesmos perrengues que eu. 

No alto do quadro, em letra feia: DOUTOR CLÁUDIO CÂNDIDO. Os colegas acompanhavam a leitura em folhas A4 semelhantes às do professor-doutor. Pedi-lhe uma. Ele abaixou a folha que lhe encobria parcialmente o rosto mal barbeado; o indicador sujo de tinta empurrou os óculos do nariz, a mão voltou ao bolso da calça. 

- Meu caro, não tolero interrupções. Esta foi minha primeira advertência ao adentrar a sala. Mas, como o senhor atrasou-se para a aula... Recapitulando, senhores: atrasos e interrupções não são, e não serão, admitidos; a dinâmica da aula é, como comunicado anteriormente, exposição do conteúdo por cinquenta minutos; findo este prazo, concederei aos senhores, no máximo, dez minutos para perguntas. Friso: perguntas atinentes ao conteúdo abordado em sala de aula; quesitos referentes a tópicos estudados anteriormente não serão admitidos. Vale dizer, os senhores quedarão sem resposta. Matéria lecionada é como água do rio: flui, segue seu curso. O conteúdo ministrado é levado pela correnteza do tempo e o Direito, como os senhores devem saber, não socorre aos que dormem. Regra básica para o bom jurista: nunca perca o prazo. Preclusão, senhores; portanto, aula dada, assunto encerrado. Outrossim, não tolerarei questões sobre tópicos ainda não lecionados; futurologia é para cartomantes, adivinhos e os ingênuos que creem neles. Se os senhores sobreviverem ao longo do semestre, terão oportunidade de ouvir-me prelecionar sobre suas eventuais questões. Dito isto, espero ter deixado claro a metodologia empregada, e espero também não regressar mais a este assunto. Duas coisas enfastiam-me profundamente: I) alunos descompromissados com o horário da aula e II) repetir-me. 

Doutor Cláudio destampou a garrafinha que suava ao lado das canetas, bebericou. Não entendi se a careta foi para mim ou em razão do trem esverdeado que engoliu. Ignorou minhas desculpas com um pigarro, tornou a cobrir o rosto com a folha. Doralina puxou a carteira, seu ombro tocou o meu: acompanha comigo. O professor retomou a leitura, voz arrastada, monótono como as ladainhas de novena que ouvi na meninice.

- Ele só vai dar uma aula mesmo? 

- Disse que ninguém presta atenção no outro por mais de cinquenta minutos. É científico, diz ele. 

- Mas ele vai receber pelas duas aulas né, retruquei, concluindo mais uma espiral no caderno. 

- Pois é. E teve a cara de pau de dizer, desse jeito empolado aí: espero os senhores não tenham quesitos, assim regressarei mais cedo à minha casa: tenho artigos para finalizar e publicar.  

Doralina imitou a voz do professor, tão direitinho... parecia o Tom Cavalcante imitando outros artistas. Sufoquei o riso, copiei os títulos que o professor acabara de anotar no quadro com sua letra ridícula. 

- Estes a inoperante da estagiária não digitou, então os senhores anotem, pois usaremos alguns capítulos do Sussekind a partir da sexta aula, e do Maranhão logo após nossa primeira avaliação. 

- Ninguém questionou esse absurdo de apenas cinquenta minutos de aula? 

Doralina, com a caneta rosa, transcrevia os títulos em caligrafia caprichada; com a roxa, sublinhou-os duas vezes. Metódica, como sempre. 

- O Dauro questionou, foi o único. 

- E? 

- E o professor disse que a metodologia dele é assim, que tem base científica e respaldo da direção da faculdade... só faltou dizer que foi abençoada pelo papa João Paulo II.  

Rabisquei no topo do caderno: ASSHOLE TEACHER.  Doralina riu; sinal que meu curso de inglês estava servindo para alguma coisa. 

- Uai, e ficou por isso mesmo, ninguém falou mais nada? 

- A Danusa pediu pra aula começar um pouco depois das sete. Falou que muitos colegas vêm de outras cidades e chegam atrasados devido ao trânsito e aos ônibus que custam a estacionar... comentou que os outros professores esperam uns dez minutos ... 

- E ele? 

- Disse que é diferente dos outros professores. E Doralina imitou-o novamente: a começar pelo meu título: caso os senhores ainda não saibam, sou o único professor com doutorado contratado por esta instituição de ensino. O único, aliás, desta cidade provinciana... Depois ele falou que a primavera antecede o verão e as andorinhas, o inverno... não entendi muito bem, acho que quis dizer que o bom aluno chega antes do professor. Ah falou também que não é dono das empresas de ônibus, nada tem a ver com “questões de mobilidade de trânsito”, que os prejudicados devem reclamar na prefeitura, ou sair mais cedo de casa. 

- Disgramado filho duma...

- Caso minha preleção esteja a perturbar a confabulação dos senhores aí dos fundos, por favor, avisem-me: não quero ser inoportuno. Posso, outrossim, ceder-lhes a palavra a fim de compartilharem conosco vosso brilhantismo e sapiência. Afinal, o que os senhores têm a dizer certamente é mais instrutivo que minha aula. 

Os bajuladores de plantão riram, feito hienas. Encarei o doutor: seus óculos novamente na ponta do nariz, o deboche escancarado entre as desagradáveis rugas de expressão. Danusa, três carteiras à frente, fez um gesto para eu me acalmar. Dauro saiu, deixou a porta escancarada: um grupo do décimo período conversava debruçado no parapeito do corredor; o relógio da igreja de Santo Ivo marcava 7:35; o tempo virava para chuva.  

 I WILL KILL THIS GUY, garatujei no caderno. Doralina acarinhou minha coxa. Doutor Cláudio bebericou mais um pouco, fez outra careta, tornou a ler. Tentei me concentrar na mão de Doralina ainda a brincar no meu jeans, ousando um pouco além da coxa. Lembrei a noite em que nos entregamos entre as estantes de Constitucional e Penal... por pouco, não ficamos trancados na biblioteca. Não teria sido nada mau, penso. Doutor Cláudio fechou a porta com força, resmungou sobre os alunos no corredor. Àquela altura a mão de Doralina me despertava outros sentimentos, e eu estava pouco me lixando para “o único doutor da instituição”.    




Texto: Raphael Cerqueira Silva 
Foto: acervo do autor 

sábado, 7 de maio de 2022

LEITURA PUXA LEITURA



Leitura puxa leitura, me disse, certa vez, um professor. Vendo-me, como de costume, lendo no pátio da escola, ele parou e explicou: um livro faz referência a outro(s) livro(s) e a filme(s) e a música(s) que, por sua vez, citam outros livros, filmes e músicas... a espiral de referências é infindável e, assim, vamos acumulando repertório, descobrindo novas leituras. 

     Antigamente, as pessoas faziam listas de futuras leituras; o professor mesmo tinha um caderno enorme, brochurão e capa dura, onde anotava títulos de livros para comprar e de filmes para alugar. Com a internet, penso, ficou mais fácil para os curiosos sairmos em busca das referências. Vejam o que me aconteceu ontem. 

Sexta-feira. O Conservatório fechado, a Praça 28 de Setembro - ó milagre! - respeitando o sossego do contribuinte, aproveitei o raro momento de silêncio para ler Ao correr da máquina, crônica de Clarice Lispector escrita em abril de 1971. Depois de discorrer sobre o amor e a verdade, sobre o “dia lindo de outono” e o “homem que veio consertar o toca-discos”, Clarice diz que assistiu ao filme Cada um vive como quer; e arremata: “tinha música e eu chorei”. Rapidamente meu lado curioso se manifestou: opa! preciso ver esse filme que tirou lágrimas de Clarice... Como eu disse, a internet facilita nossa vida: o filme está no Youtube, completo e dublado. Assisti. 

Não chorei, como Clarice; é preciso muito mais para me fazer chorar. Contudo, gostei do filme. Jack Nicholson é Robert, um ex-pianista que rompe com o passado e a família, vive um relacionamento fracassado com Rayette, tem um trabalho e relações de amizade que não lhe satisfazem. Enfim, Robert é o típico homem de trinta e poucos anos que arrasta o viver sem saber para onde... e, além de tudo, tem que ouvir de duas garotas, no fim do boliche, que está ficando careca. Acompanhei o drama de Robert, com atenção. O filme termina do jeito que eu gosto: abrupto, inesperado; só dei conta que acabou porque os créditos surgiram na tela. 

Como leitura puxa leitura... o filme tem muitas músicas, algumas executadas ao piano; fui pesquisar na internet: Chopin, Bach, Mozart. Adicionei-as à minha playlist: música clássica, ouvi vários escritores dizerem em entrevistas, ajuda na hora de escrever. 

De pesquisa em pesquisa, ocupei a noite, que deixou de ser silenciosa: ganhou até trilha sonora. Quem dera o silêncio noturno fosse sempre rompido desse jeito... 

         No momento em que escrevo esta crônica, penso no livro que comprei na internet, cuja indicação apareceu numa crônica do Drummond. Espero que o carteiro não demore a trazê-lo... Em Compre livro no táxi, o gauche conversa com um taxista que, além de levar e buscar passageiros, exerce o árduo ofício de vender livros.... o árduo aí vai por minha conta, afinal, em um país onde poucos leem  - e são as Senhoras Estatísticas que o dizem, não eu – vender livro não deve ser uma atividade muito rentável. 

           Quando o livro chegar, talvez eu escreva umas linhas; desde já, torço para que o autor faça referências a outro(s) livro(s), filme(s) ou música(s)... e que eu tenha mais noites silenciosas para ler/assistir/ouvir em paz.  



Texto: Raphael Cerqueira Silva

Foto: acervo do autor


Outro encontro

  Novamente sentado nesta cadeira desconfortável. Ah, se essa gente soubesse como odeio agências bancárias, filas e cadeiras desconfortáve...